Saindo um pouco da nossa crise política de todo dia, vamos abordar hoje um tema que de certa forma se tornou comum na última década nos mercados financeiros e ganhou ainda mais proeminência depois que a pandemia do Covid-19 deixou o mundo à beira de uma nova depressão: o quantitative easing.
Trazendo para o vernáculo, o quantitative easing poderia ser traduzido como algo como “afrouxamento quantitativo” ou “relaxamento quantitativo”. Trata-se, no fundo, de uma modalidade absolutamente heterodoxa de intervenção das autoridades monetárias (leia-se: bancos centrais) na economia. Seu propósito é estimular economias deprimidas com uma espécie de injeção de adrenalina, destinada a reanimar um paciente crítico.
Mas, afinal, o que é quantitative easing?
Para responder a essa questão, temos antes que voltar algumas casas no tabuleiro para explicar alguns conceitos básicos de economia.
A riqueza circula na economia de diversas formas. A mais comum delas é a transmissão de dinheiro (moedas e cédulas de papel). Como a disponibilidade física de dinheiro é limitada (não há dinheiro impresso em quantidade equivalente à riqueza gerada na economia), a maior parte das transações dá-se através de meios eletrônicos, como transferências bancárias, cheques e cartões de crédito. É dessa forma, por exemplo, que a cédula de R$ 10,00 que você usou para pagar o pão se transforma em R$ 10,00 na conta do padeiro, que por sua vez se transforma em um empréstimo de R$ 10,00 para uma costureira comprar linha e agulha para sua manufatura and so on…
Pois bem. Sabendo que a riqueza gira através da circulação de dinheiro, pode-se intuir que, em princípio, quanto mais dinheiro, maior será a circulação de riqueza e, consequentemente, maior será a atividade econômica daí decorrente (mais pessoas compram, mais bancos emprestam, mais gente se financia, etc).
Por que, então, não imprimir simplesmente montanhas de dinheiro e assim garantir que todo mundo fique rico, mantendo a atividade econômica sempre numa dinâmica ótima?
Porque, assim como em qualquer outro recanto do sistema econômico, também aqui prevalece a lei da oferta e da procura. Se há muito dinheiro em circulação, a oferta ficará maior do que a procura, gerando, por conseguinte, uma desvalorização desse ativo. Em termos mais simples, fica muito “fácil” ter dinheiro e, por conta disso, ninguém precisará fazer muito esforço para tê-lo. E, quando alguém quiser, por exemplo, vender o pão feito com o suor do seu rosto, não vai mais se contentar com os mesmos R$ 10,00 de antes. Agora, o padeiro vai querer R$ 20,00 para fazer valer o seu esforço. Quando isso acontece em situações normais, esse fenômeno de “dinheiro fácil”, mas com valor real cada vez menor, resulta numa velha conhecida dos brasileiros: a inflação.
Justamente em razão disso, as autoridades monetárias costumam controlar rigidamente a circulação de dinheiro na economia. Elas não só limitam a quantidade física de dinheiro, como também atuam para limitar a reprodução eletrônica ilimitada de riqueza (como exemplificado acima no caso dos R$ 10,00 do padeiro). O principal instrumento para esse efeito chama-se compulsório (para entender mais sobre compulsório, clique aqui).
Em situações extremas, no entanto, essa lógica deixa de funcionar. Quando, por exemplo, uma crise bancária de proporções desconhecidas – como foi o caso do crash de 2008 – ou uma pandemia assola um país ou o mundo, a tendência natural de qualquer cidadão é retrair-se: guardar o dinheiro no colchão, deixar de gastar o que gastava antes, economizar, porque, afinal, ninguém sabe como será o dia de amanhã. E aí, quando todo mundo resolve de uma vez só consumir menos, instaura-se um círculo vicioso: com menos consumo, haverá menos produção, consequentemente menos lucro, consequentemente menos empregos, consequentemente menos impostos recolhidos pelo Governo… Em suma, todo mundo perde.
É justamente para romper esse círculo vicioso que os bancos centrais, no desespero, costumam – pelo menos desde 2008 pra cá – recorrer ao afrouxamento monetário para quebrar uma espiral econômica depressiva. Se numa situação normal o dinheiro em circulação é controlado de forma estrita, “afrouxa-se” ou “relaxa-se” esse controle através da emissão de mais moeda. Daí o nome quantitative easing.
Mas como exatamente isso funciona?
Imagine, por exemplo, um banco qualquer que tenha R$ 100 bilhões de títulos variados em sua “conta”. Esse dinheiro rende, digamos, 10% a.a. Se o banco central ao qual a casa bancária estiver vinculada resolver partir para um quantitative easing, o que ele fará será simplesmente criar – sim, “criar”, do verbo “produzir do nada” – R$ 100 bilhões em dinheiro em suas próprias disponibilidades financeiras. Com esses R$ 100 bilhões de dinheiro em espécie que o BC produziu do nada, ele vai lá na conta do banco e “troca” os R$ 100 bilhões que ele tinha em títulos variados pelos R$ 100 bilhões em espécie.
Obviamente, tudo isso é feito hoje de forma eletrônica. Não há a “impressão física” de R$ 100 bilhões. Todavia, do ponto de vista prático, o efeito é o mesmo. O banco, que tinha R$ 100 bilhões em títulos que rendiam 10% a.a., agora terá R$ 100 bilhões em cash, que não rendem absolutamente nada.
Por que fazer isso?
Simples. Porque bancos podem ser tudo, menos doidos. Se o banco tinha um título que rendia 10% a.a. e agora só tem dinheiro em cash na sua mão, o que ele irá fazer? Emprestar aos agentes econômicos para poder remunerar esse dinheiro que está em caixa. Afinal, é daí que vêm os lucros que o sustentam. A idéia, portanto, é forçar as casas bancárias – que normalmente se retraem em cenários de depressão braba – a emprestar dinheiro para empresas e pessoas. Assim, reativa-se a circulação de riqueza e tenta-se abreviar o ciclo recessivo.
Obviamente, essa é apenas uma explicação geral e propedêutica. No mundo real, a coisa é um pouco mais complexa do que isso. No entanto, o princípio fundamental do quantitative easing é rigorosamente o mesmo em qualquer cenário: “imprimir” dinheiro para reativar a economia.
Em 2008, essa estratégia funcionou com relativo sucesso depois da crise do subprime. Como, depois da quebra do Lehman, todos os bancos ficaram com medo de emprestar uns aos outros por receio de não receber o dinheiro de volta, a impressão de dinheiro produzida pelo FED acabou resolvendo a parada.
Hoje, contudo, o buraco é mais embaixo. Não estamos mais somente numa crise bancária. Estamos numa crise sanitária e de saúde pública de proporções jamais vistas. A crise, portanto, não é de Wall Street, mas de Main Street. A estratégia de mandar rodar a Casa da Moeda terá efeito em tal cenário?
Aí já são, literalmente, outros quinhentos…
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