O mundo pós-Trump

Já não era sem tempo.

Quatro anos após ter surpreendido o mundo inteiro com sua inesperada vitória sobre Hillary Clinton, Donald Trump – o improvável presidente norte-americano – foi derrotado na sua tentativa de reeleição por Joe Biden – o mais improvável de todos os seus possíveis adversários. O mundo, tal como o conhecemos hoje, passa a mudar completamente daqui para frente.

Como esperado, Trump não engoliu bem a derrota. Aliás, nem sequer a engoliu, pois entrou em um estado permanente de negação sobre o resultado, alegando que “ganhou” o pleito, mesmo com todos os resultados apontando claramente na direção contrária. Essa postura de criança mimada e birrenta, que não aceita ser contrariada, é típica de sua ação política, e não seria de se aguardar coisa diferente vindo dele.

Evidentemente, o choro é livre e Trump pode continuar a espernear à vontade até o próximo dia 20 de janeiro, quando Biden de fato assume a Casa Branca. O prolongamento dessa situação esquizofrênica, somado à ausência absoluta de provas sobre as alegadas “fraudes” na eleição, apenas transformam aquilo que era ridículo em patético, pois ninguém em sã consciência – nem mesmo os trumpistas mais empedernidos – apostaria um só centavo numa reversão do resultado pela Suprema Corte dos Estados Unidos.

É claro que o estrebuchamento público de Trump causa algum tipo de dano ao sistema eleitoral, mas a democracia é um valor muito bem enraizado por aquelas bandas. Por mais que o comportamento do atual presidente faça com que os Estados Unidos fiquem com toda a pinta de uma república bananeira, ninguém acredita n’alguma forma de golpe de estado, muito menos através dos militares, que constituem uma das forças mais profissionais do mundo e sabem muito bem qual é o seu papel dentro da estrutura do Estado.

Resta, portanto, saber o que será do mundo depois que o ex-apresentador de O Aprendiz for definitivamente demitido” do ofício de Presidente da nação mais poderosa do mundo.

O primeiro e mais imediato efeito da derrota de Trump será a reversão completa da sua política isolacionista. A idéia de America First pode até render um bom slogan de campanha, mas para fins de “governo” do mundo foi um desastre. Os organismos multilaterais, que bem ou mal foram responsáveis pela estabilidade do globo no período pós-II Guerra, foram solenemente ignorados em quatro anos de mandato. Até mesmo a OMC, responsável por cuidar da saúde pública mundial, deixou de ter os Estados Unidos como membro, o que, por óbvio, retira muito da força e da legitimidade de qualquer instituição. Biden, portanto, trará os Estados Unidos “de volta para o mundo”, fato que, ironicamente, só encontra paralelo com a viagem de Nixon à China em 1972, quando o republicano tirou o gigante asiático de seu isolamento crônico e o “resgatou” para o planeta. Agora, o resgate é “interno” e será patrocinado por um democrata.

Em segundo lugar, Biden deve pôr em marcha o chamado green new deal. A mudança de foco da indústria de base, especialmente a do petróleo, para uma indústria mais moderna, baseada em meios alternativos de energia (com a eletricidade à frente), é capaz de mudar o paradigma energético de todo o planeta. Somando-se a isso o fato de que estamos nadando no maior período de liquidez da história e que uma vacina para a Covid deve surgir em horizonte próximo, podemos concluir que um boom econômico é algo bastante factível nos próximos anos. Biden, portanto, pode surfar em posição privilegiada um dos maiores crescimentos das últimas décadas sem precisar sequer fazer grande esforço para tal.

Mas tudo isso ainda será pouco. O negacionismo climático e científico, que atingiu as raias do paroxismo com a pandemia de Covid, tende a ser sumariamente apagado da existência. Salvo nos grupos de WhatsApp e algumas lideranças exóticas espalhadas pelo mundo, ninguém mais levará a sério a idéia de que o coronavírus provoca apenas uma “gripezinha”, passível de ser curada com cloroquina ou coisa que o valha. O famoso bully pulpit de Presidente dos Estados Unidos funcionará, agora, na mão contrária dessas maluquices, deixando de servir como megafone amplificado das mais loucas teorias conspiratórias que vicejam nas redes insociáveis.

Pode parecer pouca coisa, mas tudo isso está longe de ser trivial. Nos últimos quatro anos, o mundo se acostumou a um “novo normal” em que predominava a anormalidade. Pelo menos em relação aos Estados Unidos, olhar a última loucura no Twitter deixará de ser obrigação para quem acompanha a política internacional ou até mesmo o mercado financeiro. O mero regresso à normalidade já tirará muito da tensão hoje existente, tanto entre as lideranças mundiais, como também em relação à população em geral.

Com 78 anos de idade, quase 40 de Washington e uma fama um tanto exagerada de espalhar gafes por onde passa, Biden parece ser o homem certo para o lugar certo nessa quadra do mundo. Por conta da idade, dificilmente buscará uma reeleição em 2024, quando terá impressionantes 82 anos. A falta da perspectiva de um segundo mandato, no entanto, abre portas para o exercício saudável da ambição de fazer tudo o que puder de melhor nesse mandato único que tem pela frente, sem se preocupar tanto com os efeitos eleitorais de sua agenda. À semelhança do que por vezes ocorre na política do Vaticano, Biden poderá ser o “Papa de transição” de que o mundo tanto necessita depois de quatro anos de caos perpetrado por Donald Trump.

Mas isso tudo talvez não seja mais importante, afinal de contas. Numa eleição extremamente polarizada, contra um candidato à reeleição, o povo norte-americano decidiu dar um basta às loucuras do atual presidente. Numa campanha permeada por fake news e pelas ameaças mais loucas – desde “Biden comunista” até o risco de ver implantado o “socialismo” nos Estados Unidos – a democracia americana, com todos os seus defeitos, conseguiu provar que é mais forte do que populistas autoritários que pretendem destruir o próprio conceito de Nação, reduzindo-a somente a seus seguidores mais fanáticos. Como disse Van Jones, comentarista político da CNN internacional, essa eleição provou que “o caráter importa; dizer a verdade importa; ser uma boa pessoa importa”. Este é o exemplo que fica para o mundo.

Abaixo, seu emocionante depoimento ao comentar o resultado da eleição:

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