A candidatura de Lula, ou O problema da Lei da Ficha Limpa

O embate estava anunciado desde há muito. Quando Dilma Rousseff subiu pela segunda vez a rampa do Planalto, seu tutor e guru espiritual mal conseguia conter a ansiedade para tomar o lugar de sua pupila e assumir o cargo que ele considera eternamente seu: o de Presidente da República. Com a nau petista fazendo água por todos os lados e com o pessoal da Lava-Jato já acossando o seu cangote, a Lula não restava outra alternativa: tinha porque tinha de voltar à Presidência.

Quatro anos se passaram, Dilma foi defenestrada da cadeira, Michel Temer mal se aguenta no cargo e Lula hoje ocupa uma cela privativa no PF’s Inn de Curitiba. Ninguém de 2014 poderia imaginar que em 2018 estaríamos neste pé de situação, muito menos que o líder das pesquisas estivesse usufruindo uma temporada na cadeia para expiar parte de seus pecados. E o que antes era dado como fato consumado no cenário político-jurídico do país volta à baila da pior forma possível: a Lei da Ficha Limpa.

Como todo mundo sabe, a Lei da Ficha Limpa impede a candidatura de gente condenada em segundo grau de jurisdição. Quem arrostar uma condenação criminal por órgão colegiado (não necessariamente pela confirmação de uma sentença condenatória de 1º grau), passa automaticamente para a lista dos inelegíveis e não pode sair por aí pedindo voto pra ninguém.

O propósito da lei era claro. Uma vez que os processos judiciais no Brasil (especialmente os criminais de quem tem dinheiro) raramente chegam ao seu final, a legislação diz que a Justiça Eleitoral pode “contentar-se” com uma condenação em segundo grau para barrar a tentativa de eleger quem está encalacrado com a Justiça. Pretendia-se, portanto, fazer uma limpa nas eleições, impedindo a candidatura de notórios profissionais da política brasileira.

Mas qual o problema dessa lei?

De acordo com o art. 15 da Constituição Federal, não há mais cassação de direitos políticos, como ocorria a torto e à direita na ditadura militar. Há apenas perda (ex: estrangeiro naturalizado que tem sua nacionalidade cancelada – art. 15, inc. I, CF/88) ou suspensão dos direitos políticos (ex: condenação por improbidade administrativa – art. 15, inc. V, CF/88).

E daí?

Daí que, no mesmo artigo em que a Constituição trata dos direitos políticos, está expresso que a suspensão dos direitos políticos por imbróglios penais somente ocorrerá após “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os seus efeitos”. Ou seja: enquanto houver possibilidade de recurso, o sujeito ainda pode eleger e ser eleito para qualquer cargo.

Não se trata, portanto, de discutir a constitucionalidade da Lei sob uma ótica de “presunção de inocência”, como se a questão da suspensão dos direitos políticos estivesse associada à possibilidade de prender-se um sujeito antes do trânsito em julgado da condenação. Absolutamente. Segundo a Constituição, direitos políticos e tutela das liberdades constituem categorias autônomas, reguladas de acordo com preceitos específicos para cada caso. E, no caso do direito de participar do exercício universal do sufrágio, o texto constitucional não deixa dúvidas: o cidadão só pode ser impedido de dele participar após “condenação criminal transitada em julgado”.

Na verdade, pretendeu-se com a Lei da Ficha Limpa contornar um problema de ordem prático: não importava quão larápio fosse o sujeito; o pessoal continuava a votar nele. Logo, para impedir o povo de renovar o erro a cada quatro anos, vem a Justiça e simplesmente tira o sujeito da jogada, muito embora não exista, ainda, uma sentença condenatória da qual não caiba mais recurso.

Na época, todo mundo bateu palma, inclusive a gente do PT que hoje vocifera contra a norma. O fato de ela ter sido sancionada pela mão do seu cliente mais ilustre (Lula) apenas adiciona ironia a uma circunstância trágica da vida nacional. Como parecesse impossível resolver a questão fazendo com que os processos dos políticos criminosos chegassem ao seu final – e, portanto, transitassem em julgado -, vem a Lei e atalha o caminho previsto na Constituição para ceifar os direitos políticos de quem, em tese, ainda poderia estar no jogo.

No fundo, a Lei da Ficha Limpa e a execução provisória da sentença condenatória de segundo grau apenas espelham um modo muito particular de fazer o Direito no Brasil. Ao invés de se atacar o problema (a crônica incapacidade do Judiciário de produzir sentenças definitivas), dá-se um jeitinho de modo a alcançar o resultado desejado pelo clamor público.

O Supremo Tribunal Federal já julgou a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e disse que tava tudo certo. Lula, portanto, está fora do jogo eleitoral. Ponto. Mesmo assim, isso não impede a reflexão sobre os caminhos que o país acaba tomando quando colocado diante de seus dilemas. Como todo mundo está careca de saber, para todo grande problema há uma solução simples.

E, em geral, errada.

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