Algo normalmente difícil de obter é um consenso acerca das obras de arte mais bonitas da história. Em termos de escultura, não poderia ser diferente. Uns dirão que é a Vênus de Milo, outros dirão que O Pensador de Rodin e haverá mesmo quem diga ser a Vitória de Samotrácia, mas conhecida como Vitória Alada.
De fato, é extremamente difícil fazer um ranking de genialidade entre todos os mestres que conseguiram fazer das pedras emoção em estado bruto. Mas, qualquer ranking que se preze, terá que incluir no top five, sem dúvida, o Davi de Michelangelo.
O que faz deste Davi uma obra realmente única?
Na minha opinião, o Davi de Michelangelo é a mais perfeita reprodução em pedra de um ser humano. Nenhuma outra obra reúne de forma tão assustadoramente precisa os contornos físicos do homem. Não fosse a imensa altura – uns 5 metros – alguém ficaria perguntando se aquilo tudo não seria um molde lançado por cima de um corpo real.
Ninguém seria doido de negar o gigantesco valor artístico das obras já citadas. Mas, de certo modo, nenhuma delas alcança o nível de precisão anatômica detalhada de Davi. A Vênus de Milo é bela, porém singela. Sua fama internacional talvez derive mais das partes que faltam – os braços – do que propriamente do conjunto em exposição. Mais ou menos do mesmo jeito, a Vitória Alada também se vale da história ao seu redor do que propriamente da escultura em si. Além disso, há de se considerar que ambas estão no Louvre, o que, se não faz por si só a fama de alguma obra, ajuda bastante.
Por seu lado, o Pensador de Rodin é uma obra, do ponto de vista puramente estético, relativamente tosca. Os traços do homem não são, assim, tão bem definidos. O que faz a obra é a reflexão da razão do ser humano. Mas a beleza da escultura não é em si algo que comova. É o sentimento que desperta em que o vê.
Talvez a única escultura que realmente rivalize com o Davi seja a Pietà. Mas aí está em casa, já que ambas são do mesmo autor.
Encomendada pela Operai del Duomo de Firenze, a estátua do Rei Davi deveria ser esculpida em um enorme bloco único de mármore de carrara. Muitos escultores famosos da época haviam sido convidados à empreitada, mas a recusaram, diante da enormidade do trabalho que se desenhava. Já famoso por sua Pietà, mas ainda com somente 26 anos, Michelangelo Buonarrotti aceitou o encargo.
Michelangelo concebeu um Davi jovem e desafiador, carregando a funda que seria utilizada para derrubar o gigante Golias. Sente-se no ar a imponência da personagem, com o rosto da estátua propositadamente de lado em relação ao conjunto, como se estivesse a mirar o infinito. Isso dá ao seu olhar uma altaneira distância, como se estivesse a dizer: “Eu sou o cara!”. Com algum esforço, é possível ouvir a estátua sussurrando a mesma coisa.
Michelangelo privilegiou propositadamente as curvas, provavelmente para dar maior equilíbrio à estrutura e à composição. A única coisa que parece desproporcional na escultura são as mãos, quase do tamanho dos pés. Talvez Michelangelo tenha feito assim para fazer com que toda a estrutura estivesse em perfeita harmonia. De outra forma, talvez a cabeça e o olhar distante da figura predominassem na atenção de quem olha.
Michelangelo levou três anos para terminar seu Davi. A estátua foi colocada em frente ao Palazzo Vecchio, sede do poder florentino, onde ficaria por quase 4 séculos.
Exposto ao sol e à chuva, a estátua naturalmente sofreu os danos do tempo. Com isso, no final do século XVIII alguém teve a idéia de transferi-la para a Galleria dell’Accademia, onde está até hoje. Em seu lugar, foi colocada uma réplica da estátua.
Para visitar o Davi, convém comprar antes o ingresso, de modo a escapar de la puta cola que antecede a entrada na Galleria. O espaço é bem pequeno e, para não lotar, só deixam entrar algumas pessoas de tempos em tempos (não à toa, o muro é inteiramente pichado pelos sujeitos que passaram horas ali esperando).
Pra quem for a Florença, trata-se de visita obrigatória. Acredite: poucas sensações serão tão extasiantes quanto ser recebido naquele espremido salão da Galleria pelo gigante de mármore. É pagar pra ver.