A inflação no Brasil e a grande sacada do Plano Real

Quem nasceu na década de 90 nem faz idéia, mas houve um tempo no Brasil em que o dinheiro se desfazia como pó na nossa mão. Quem recebia na segunda-feira o dinheiro para comprar o lanche na escola, tinha que pedir mais a pai e mãe para inteirar o lanche da sexta-feira. O fenômeno era representado por um monstro imaginário – o Dragão – e tinha em um instrumento banal sua expressão mais concreta – as máquinas registradoras de preço. Sim, a inflação foi um mal que atormentou o país por quase meio século.

Ela começou com mais vigor no fim do Governo JK. Feita a gastança com o Plano de Metas e a construção de Brasília, com o agravante de ter fechado as portas ao financiamento externo, o Presidente Bossa Nova instaurou um regime de corrosão do valor da moeda que, pouco a pouco, foi destruindo a noção que o brasileiro tinha do dinheiro.

Bem verdade que no começo do regime militar tentou-se dar um basta à espiral inflacionária. Tendo à frente Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, o governo Castello Branco promoveu um verdadeiro ajuste fiscal que traria um pouco de racionalidade à política econômica.

Graças às “maldades” cometidas no governo Castello Branco, a economia estava reorganizada e preparada para crescer. Como Delfim Netto gostava de reconhecer, quando assumiu o cargo de Ministro da Fazenda, o trabalho de salsicharia já estava todo feito. Bastava-lhe afundar o pé no acelerador.

O problema é que não estava preparada para crescer a taxas de dois dígitos anuais. Não havia poupança interna suficiente para tal crescimento. Para sustentá-lo, seria necessário recorrer a financiamento externo.

Mas os gorilas não quiseram saber. Sabendo que tinham no crescimento econômico a fonte de legitimidade para sustentarem-se no poder, disseram a Delfim: “Manda brasa!”. E ele mandou.

No período de 1969 a 1973, o país cresceu a taxas de dar inveja à China atual. Por um curto espaço de tempo, foi o país que mais cresceu no mundo. De outra banda, porém, a dívida externa cresceria exponencialmente. Pra piorar, em 1973, depois da guerra do Yom Kippur, houve o primeiro choque do petróleo. Dependente à razão de 90% de importação de petróleo, o Brasil teria que baixar o nível do crescimento para depender menos do petróleo importado. Com sua miopia típica, os milicos não quiseram arriscar seu sustentáculo político. Mantiveram o crescimento do país em níveis asiáticos. Valeram-se, para isso, do financiamento das economias árabes repentinamente inundadas com dólares de todo o mundo. Os petrodólares sustentaram de modo artificial o crescimento do país até meados da década de 70.

Quando houve o segundo choque do petróleo, a inflação nos Estados Unidos explodiu. Com um só tacape, o então presidente do FED, Paul Volcker, triplicou a taxa de juros de 7% para 21%. O Brasil quebrara.

Passamos, então, a década de 80 inteira tentando apagar os incêndios causados pelos erros cometidos durante os anos 70. Sem poupança interna e sem financiamento externo, o único recurso para manter a economia viva era mandar rodar a Casa da Moeda. Com a emissão em massa de dinheiro, a inflação atingiu níveis obscenos.

Foi aí que se teve a idéia de entregar o país nas mãos de uma tróica de economistas. Persio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende, todos na casa dos 30-40 anos, formariam o triunvirato que, na prática, ditou os rumos da economia do país por quase uma década. O Brasil transformara-se em um laboratório de experimentação econômica. Cada idéia teórica era colocada em prática como solução milagrosa, apta a resolver o problema da inflação. E assim, na base da tentativa e erro, fomos submetidos a uma sucessão infindável de planos econômicos: Cruzado I, Cruzado II, Bresser, Verão, e por aí vai.

O que nenhum dos “gênios” tinha entendido era que nenhum plano econômico funcionaria enquanto houvesse no Brasil a chamada “correção monetária”.

Criada ainda no Governo Castello Branco por Roberto Campos, a correção monetária pretendia aumentar o valor da poupança, garantindo a proteção dos ativos contra a inflação, e, ao mesmo tempo, estimular o mercado secundário de títulos do governo, facilitando o financiamento de sua dívida. A correção monetária permitia que o valor dos ativos fosse “corrigido” nos balanços contábeis dos bancos pela taxa de inflação do período. Com isso, um bem cujo valor real fosse de 100 cruzeiros, terminaria o ano valendo 150, caso a inflação alcançasse 50% no ano.

Graças à correção monetária, a inflação deixou de ser um inimigo dos balanços dos bancos e tornou-se um aliado. Toda a depreciação inflacionária dos ativos era anulada pelo ajuste contábil da correção monetária. Foi ela que permitiu, segundo estudo de Joelmir Beting, que o Brasil ultrapassasse relativamente incólume todo esse período mesmo trocando dez vezes de moeda e sofrendo uma inflação de 1 quatrilhão por cento. (Para se ter uma idéia do tamanho do despautério, a Alemanha do primeiro pós-guerra foi à convulsão social e, depois, ao nazismo, dentre outras coisas, porque a inflação atingira “apenas” alguns bilhões por cento).

O problema com a correção monetária era seu efeito inercial. Se todos os ativos são corrigidos monetariamente pela inflação acumulada no período, a inflação futura jamais seria menor do que a inflação passada.

Foi somente em 1993 que os “gênios” entenderam que, para acabar com a inflação, era preciso acabar com a indexação econômica, isto é, a vinculação de todos os preços a índices que garantissem a correção monetária.

E aí, realmente, os sujeitos – especialmente Persio Arida – foram brilhantes. Em uma economia com uma verdadeira míriade de índices de correção (IGP, INPC, IGPM, etc), eles resolveram unificar todos os preços sob um único “indexador”: a Unidade Real de Valor, ou URV.

Depois de um período de quatro meses de conversão de todos os preços ao indexador universal, bastou fazer a mudança: “trocar” o “indexador” pela moeda. Ou seja: transformar as URV’s em Real.

Desde então, mesmo com sucessivas crises econômicas, com maxidesvalorizações cambiais pelo caminho, a inflação jamais voltou a atingir os níveis obscenos dos anos 80. Tudo porque o Plano Real acabou com o efeito inercial da inflação. Finalmente a população tinha de volta a moeda como referência de valor para a economia.

De fato, Fernando Henrique e sua equipe merecem os méritos por terem alcançado essa proeza. Mas não se devem esquecer os erros cometidos durante todo esse período. Fomos transformados por quase uma década em ratos de laboratório nas mãos de cientistas inexperientes.

O Brasil voltou a ter moeda, sim. Mas a que custo?

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5 respostas para A inflação no Brasil e a grande sacada do Plano Real

  1. Mourão disse:

    Verdadeira aula de história econômica do Brasil,deconhecida por uns e esquecida por outros.

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