Recordar é viver: “Os 50 anos do golpe militar de 1964”

Dez anos depois, a triste constatação de que nada, nada mesmo, mudou.

É o que você vai entender, lendo.

Os 50 anos do golpe militar de 1964

Publicado originalmente em 31.3.14

Se você é brasileiro e não passou os últimos dias em Marte, deve ter sido avisado de que hoje faz 50 anos do golpe militar de 1964. À direita e à esquerda, o 31 de março continua suscitando paixões e alimentando discussões acaloradas entre os partidários de um e do outro lado. É como se meio século não tivesse se passado desde o movimento militar que derrubou o presidente João Goulart.

Por isso mesmo, falar de 1964 é sempre se arriscar a tomar bordoadas, tanto de um lado como de outro. Mas, como o lema deste espaço é sempre dar a cara a tapa, vamos tentar entender por que 64 é ainda uma data tão marcante para a história do Brasil.

A despeito da premeditação e da conspiração aberta contra Jango, o golpe, tal qual se desenrolou, foi uma improbabilidade histórica. Basta dizer que começou por ordem de um inexpressivo general das Minas Gerais. De pijama, Olympio Mourão Filho tirou a tropa da caserna e resolveu descer a serra em direção ao Rio de Janeiro. Daí pra frente, o que se assistiu foi o desmantelamento completo do “dispositivo” do general Assis Brasil, dando aos golpistas uma vitória tão rápida e incontestável que rendeu ao golpe, cinquenta anos depois, uma aura de movimento articulado que não correspondia à desorganização que imperava entre os revoltosos.

1964 encerra um ciclo de quarteladas no país. Desde 1954, quando os comandantes militares deram o ultimato de renúncia e provocaram o suicídio de Vargas, o Brasil passou por uma série de revoltas militares de maior ou menor intensidade, até desaguar na deposição de Jango.

Como se chegou até ele?

Como todo fato histórico, uma só causa não explica o golpe militar daquele ano. Influência norte-americana, oposição golpista, inabilidade política de Jango, enfim… Muitos foram os fatores que levaram os milicos a saírem das casernas para depor o sucessor de Jânio Quadros. No entanto, como observou certa vez Elio Gaspari, o grande problema foi que o país chegou a uma situação na qual havia mais gente interessada em derrubar a democracia do que em mantê-la.

Esse, aliás, é um dos pontos mais criticados nesse tipo de avaliação, especialmente pelos revisionistas históricos. Ao contrário da versão que ficou para a posteridade, os revisionistas agora dizem que Jango tinha grande apoio popular, e que a “revolução” estava circunscrita a uma conjunção astral maligna entre elite, Igreja, mídia e militares.

Falta explicar, contudo, a falta de reação à deposição de Goulart. Se havia efetivamente tanto apoio e Jango era um presidente tão popular, como golpistas desarticulados conseguiram derrubá-lo em dia e meio? Por que nos meses subsequentes não houve revoltas contra os militares? A razão era simples: porque, ao contrário do defendido pelos revisionistas, o golpe encontrou forte apoio na sociedade civil.

Na verdade, o regime militar só foi confrontado seriamente pela população quatro anos depois, em 1968, quando a desgraça já estava feita. Foi justamente a massa nas ruas que levou o inepto Costa e Silva a decretar o AI-5 e instaurar de vez a ditadura no Brasil. Até então, vivia-se uma “ditadura envergonhada”, que derivava sobretudo da personalidade vacilante de Castello Branco.

Por que 1964 permanece tão vivo na memória? Por que essa é uma data tão presente, se tivemos rompimentos da ordem constitucional pelo menos em outras quatro ocasiões (1930, 1937, 1945 e 1955)?

Essa talvez é a pergunta mais difícil de responder. Há várias teorias a esse respeito. Mas, na minha modesta opinião, a sobrevida histórica de 1964 deriva fundamentalmente de dois fatores.

Primeiro, o ressentimento recíproco entre os militares, que deram o golpe, e o grosso da sociedade civil, que o apoiou. Para os militares, eles atenderam a uma convocação nacional e impediram a “cubanização” do Brasil. Depois, quando o regime virou vinagre, nenhuma das suas “contribuições para o país” foi reconhecida e – pior – transformaram-se em cães leprosos, dos quais toda a gente se afasta.

Do outro lado, a sociedade civil que apoiou o golpe se arrependeu amargamente da opção feita. Para a maioria, depor um presidente constitucional era lícito, desde que para se evitar um mal maior (o comunismo). Entretanto, não passava pela cabeça de ninguém que os militares pudessem alijar os civis do comando do país. Pior. Ninguém imaginava que o expurgo pudesse durar tanto tempo. Não custa lembrar que, até então, o mais longo período de exceção pelo qual o país passara havia ido o Estado Novo, que durou “apenas” oito anos.

O segundo e principal fator, a meu ver, é que o país não soube “elaborar” o período militar. “Elaborar”, para quem não sabe, é um termo da psicologia que designa o processo através do qual o indivíduo consegue entender e, depois, superar um trauma existencial. Ao contrário de outros países, não houve nada disso por aqui.

Não houve, por exemplo, um processo de reconhecimento dos crimes cometidos pela ditadura. Até hoje, o Exército mantém obsequioso silêncio sobre as barbaridades cometidas durante o regime militar. Do lado civil, pensou-se que tudo se resolveria com o “cala-a-boca” do “Bolsa Ditadura”. Tal raciocínio pedestre levou o país a gastar quase o triplo do que a Alemanha gastou com vítimas do regime nazista e, ainda assim, manter a ferida aberta.

A única tentativa séria de levar a empreitada adiante foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal, o que levou o Brasil, signatário de 11 em cada 10 tratados sobre direitos humanos, a ser o único país deste lado do planeta a não punir gente que matou e torturou debaixo de uma estrutura estatal de poder.

Hoje, em um suposto ato de contrição, o Ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, pediu desculpas pelas atrocidades cometidas durante a ditadura. Com o devido respeito, o ato não representa nada. Assim como ninguém pede desculpas a outra através de intermediários, não há como imaginar que se possa ter como válida as escusas apresentadas por quem militava no lado oposto do campo político dos generais. Enquanto a desculpa não vestir farda e ostentar dragonas, de nada adiantarão os pedidos oficiais feitos pelo Estado brasileiro.

Assim como os desaparecidos com os quais sumiu, a ditadura militar continua pairando sobre o panorama político nacional como um cadáver insepulto. E assim permanecerá até o dia em que o país tiver coragem de olhar-se no espelho para enfrentar os seus próprios demônios.

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