Nau à deriva, ou Para onde vai o Governo Lula?

Quem acompanha política há algum tempo sabe que existe um padrão que mais ou menos se repete ao longo dos anos: em qualquer esfera, quando um governo antigo sai, um novo assume e, até que as abóboras se ajeitem na caçamba, o caminhão tem de passar por muito buraco no caminho. Ou seja: há muita bateção de cabeça e desencontros na equipe, até que a coisa afinal comece a se acertar e a administração possa tomar um rumo.

Essa não era bem a expectativa quando Luís Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Planalto pela terceira vez. Não só porque ele próprio havia subido outras duas vezes, mas também porque, por interposta pessoa (Dilma Rousseff), Lula e sua equipe já haviam percorrido aquele mesmo trajeto outro par de vezes. No somatório geral, foram portanto quatro vezes em que a trupe petista esteve albergada no coração do poder. Logo, não dá pra ter com ela a mesma paciência dispensada a quem assume a Presidência pela primeira vez.

Vencedor do pleito mais disputado da nossa breve história democrática, Lula estava careca de saber que iria assumir um país fraturado até a medula. Não só porque o anti-petismo – presente desde sempre em todas as eleições presidenciais de 1989 até 2022 – estava lá novamente, mas porque o seu antípoda – o bolsonarismo – havia cupinizado as instituições da República, a ponto de tornar possível uma tosca tentativa de golpe no dia 8 de janeiro de 2023. Lula sabia que precisava de uma “frente ampla” para derrotar Bolsonaro. O que ele parece não ter entendido, contudo, é que ele também precisava de uma frente ampla para governar o país após tomar posse.

Desde quando assumiu, Lula e seu inner circle parecem ter acreditado que a esquerda – mais especificamente, a esquerda representada pelo PT – ganhou sozinha a eleição. Na verdade, não fosse o apoio de uma parcela considerável da população que detesta o PT mas, ainda assim, preferia o partido da Estrela Vermelha a uma ditadura Bozística, Lula teria sido mandado de volta pra casa (e, possivelmente, para a prisão depois disso). Foram os votos dos tão famigerados “liberais” e “isentões” que permitiram à esquerda voltar novamente ao centro do poder em Brasília.

Não bastasse essa piração esquerdista coletiva, Lula parece não ter compreendido o grau de devastação institucional que o bolsonarismo conseguiu deixar na República. Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, a esquerda não era tão minoritária no Congresso como era agora. Além disso, com o centrão da época, espelhado no velho PMDB, era possível negociar em termos razoáveis, na velha base do toma-lá, dá-cá das emendas parlamentares.

Hoje, além de a esquerda estar reduzida a menos de 1/3 do parlamento, o centrão de agora esbaldou-se nos dinheiros do orçamento que foram sequestrados durante o desgoverno Bolsonaro. Como a Jair não interessava outra coisa senão passear de moto, jet ski e tentar organizar um golpe de Estado, o centrão vendeu os seus serviços em troca do assenhoramento de praticamente toda a verba discricionária existente no orçamento da União. Pior. Nem sequer a prerrogativa de pagar ou não as emendas restou mais ao Governo, impositivas que quase todas elas viraram nesse período de trevas da República.

Sem maioria congressual e com instrumentos reduzidíssimos para cooptar algo que se pudesse assemelhar a uma “base de apoio”, a Lula restava manter os compromissos que firmara durante a eleição, ou seja, trazer para seu barco toda a gente que se dispusesse a reconstruir o país de modo a garantir a democracia tão duramente conquistada pela geração anterior. Ao invés de fazer isso, Lula loteou os principais centros de distribuição de poder entre petistas e empalhou duas de suas maiores estrelas (Marina Silva e Simone Tebet) em ministérios que, se não se pode dizer que sejam irrelevantes, possuem pouca ou nenhuma expressão real de poder.

Para piorar, na tentativa de trazer o país de volta ao mundo (o que é correto), Lula parece ter se esquecido de ter indicado alguém para tocar a quitanda na sua ausência. Em um cenário ideal, Lula viajaria o mundo, vendendo o país com a ajuda de sua extraordinária história política, e deixaria a um preposto (Geraldo Alckmin?) o papel de ser o “primeiro-ministro” na sua falta. Desse modo, a roda continuaria girando por aqui e Lula seguiria fazendo aquilo que ele mais gosta: posar de líder global frente à mediocridade geral das lideranças dos países ricos.

O que ocorreu, ao contrário, foi que Lula continuou viajando e, na sua ausência, ninguém ficou empoderado para resolver as pendengas políticas do dia-a-dia. Resultado: crises e paralisia da máquina, tudo na espera dos retornos do Presidente para arbitrar os conflitos entre os seus ministros. Como desgraça pouca é bobagem, não havendo professor para colocar ordem na sala, instaurou-se a balbúrdia do cada um por si no governo. A isso se deve, por exemplo, a crise da distribuição dos dividendos da Petrobras, numa briga pública entre o Ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates. Em um governo “normal”, coisas assim jamais aconteceriam.

Comenta-se nas matérias de jornal que, com 78 anos nas costas, Lula já estaria velho e de “saco cheio” para fazer “política”, isto é, receber parlamentares e lideranças para conversar, celebrar acordos, organizar consensos, de maneira a fazer com que sua agenda caminhe. Pode ser. O fato, contudo, é que o Presidente da República é ele. E só ele pode dizer para onde quer levar o seu governo.

Há exato um ano, escreveu-se aqui sobre os 100 primeiros dias do Governo Lula. Na ocasião, foi constatado que o impulso inicial do novo governo – anestesiado pela tentativa de golpe do dia 8 de janeiro – havia se perdido em “intrigas palacianas e guerrinhas de poder entre as diversas alas do PT”. Passados 365 dias, é triste constatar que nada mudou nesse cenário. A nau, como se vê, continua à deriva, sem que o capitão se disponha a assumir o leme da embarcação.

Que Deus nos ajude…

Esse post foi publicado em Política nacional. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.