Como toda a tragédia, o bolsonarismo não fez “sucesso” somente por conta de seu apoio popular. Ainda que baseado em um fanatismo de fundo quase religioso pela figura do “Mito”, o fato é que o plano de ocupação do poder dos Bolsonaros e agregados obedeceu a uma lógica bem estruturada. Se não fosse assim, não teria sobrevivido no poder, muito menos chegado a onde chegou, às beiras da reeleição. Na mui feliz definição do cientista político Christian Lynch, o bolsonarismo assenta-se fundamentalmente no tripé mentira-suborno-intimidação.
O primeiro pilar do regime bolsonarista é, por óbvio, a mentira. Até aí, nada de novo sob o Sol, porque mentir é algo tão natural para um político quanto o ato de respirar. Mesmo assim, há algo de diferente na forma de expressão e de propagação da mentira no bolsonarismo. Para que alcançasse o tamanho e a projeção que alcançou, foi fundamental para o regime dos Bolsonaro a movimentação do famigerado “Gabinete do Ódio”.
O Gabinete do Ódio, como todo mundo sabe, funcionava a partir de uma cadeia de comando muito bem definida. Era nele que eram gestadas e depuradas as teorias das conspirações mais fantasiosas que rolavam no zap profundo. Com um esquema profissional de difusão, as mensagens eram primeiramente centralizadas e unificadas no centro nervoso do Gabinete do Ódio (onde operava o onipresente Carlos Bolsonaro, o Carluxo).
A partir de então, eram distribuídas através de diversos canais de comunicação a “influenciadores digitais” nas mais diversas plataformas: WhatsApp, YouTube, Facebook, Instagram, Twitter, etc. Como cada um desses influenciadores mantinha uma legião de seguidores, a mentira chegava praticamente “intacta” na ponta da rede, permitindo que a “tropa bolsonarista” mantivesse a “ordem unida”. Ao contrário do que ensina a regra do telefone sem fio, segundo a qual a passagem do cometa Halley, visível a olho nu a cada 76 anos, se transforma na festa 76 anos dos Halley e seus cometas com todo mundo nu, a mensagem que saía do Gabinete do Ódio chegava rigorosamente a mesma na “Tia do Zap”.
Se você duvida do poder que essa sistemática detém, basta observar o que aconteceu nos últimos três dias que antecederam a votação para presidência do Senado. O que se avizinhava como um passeio tranquilo de Rodrigo Pacheco pela reeleição subitamente virou uma espécie de “drama”, com gente calculando que o presidente do Congresso ganharia por uma margem mínima de dois votos e poderia, no limite, até mesmo perder a reeleição. A “guerra psicológica” foi tão eficiente que o Planalto, que jurara não interferir nas eleições do Congresso, mandou ministros e operadores a campo para “garantir” a vitória de Pacheco. Contados os votos, o atual presidente bateu o bolsonarista Rogério Marinho por 49×32, mais ou menos o que se projetava desde a semana passada. Ou seja: o “acirramento” da disputa ou mesmo a “virada” de Marinho nunca passou de um sonho de uma noite de verão.
Outro pilar importantíssimo do bolsonarismo foi o suborno. Valendo-se de um autêntico vale-tudo institucional, Bolsonaro e seus asseclas não tinham o menor pudor em “comprar” quem se dispusesse a ser comprado. A verdade – é triste reconhecer – é que, nessa seara, o bolsonarismo encontrou terreno fértil para prosperar, tal a quantidade de autoridades dispostas a se vender suas consciências por quaisquer 30 moedas de prata.
Obviamente, grande parte desse esquema não operou na base da troca de dinheiro pura e simples (embora ela tenha ocorrido aos montes, como faz prova a vergonhosa sistemática do orçamento secreto). Na verdade, a maior parte do “suborno” veio através de promessa de recompensas (nomeações para futuros cargos, por exemplo) ou ofertas de prebendas (sinecuras no exterior, por exemplo).
Foi assim que Jair Bolsonaro conseguiu uma blindagem institucional jamais vista por essas paragens, a ponto de ele absolutamente deixar de sequer fingir que estava submetido à lei como qualquer outro cidadão. Nem sequer multa de trânsito o sujeito levava, e olha que não faltaram motociatas para que os agentes da lei fizessem cumprir a legislação. Esse foi talvez o maior sintoma da disfunção institucional a que nos submetemos por infindáveis quatro anos.
Quando a mentira e o suborno não funcionavam, o bolsonarismo recorria à sua forma mais bruta e radical: a intimidação. Garantida virtual imunidade para todo tipo de atrocidade que se propalava sob o pálio manto da “liberdade de expressão”, quem não se perdia na mentira ou se rendia ao suborno, passava a ser intimidado, muitas vezes fisicamente, para que não pusesse qualquer empecilho à consolidação de poder do grupo bolsonarista.
Pode parecer banal, mas não é comum (e menos ainda neste Brasil varonil) ver gente, em público ou em rede social, ameaçando agredir ou mesmo matar outra pessoa. Por mais que a violência não chegasse às vias de fato, a questão é que a mera ameaça já era suficiente muitas vezes para demover alguém ou alguma autoridade de fazer algo que desagradasse os bolsonaristas. Tal perspectiva é agravada pelo fato de que eram pouquíssimas, quase nulas, as chances de que o agressor viesse a responder criminalmente pela ameaça.
Para além dos casos pontuais, a intimidação também se dava em nível institucional. Os rompantes de Bolsonaro (“Acabou, p….!”, “Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha!”, e tantos outros) sempre traziam consigo uma ameaça velada de que, no limite, o então Presidente poderia invocar as “suas” Forças Armadas para dar um golpe e fechar de vez o regime. O 8 de janeiro demonstrou que a maioria dos militares preferiu seguir dentro da legalidade, mas seria de uma ingenuidade atroz imaginar que não houvesse em suas fileiras, na ativa e na reserva, quem desejasse o mesmo fim aterrorizante para a democracia brasileira.
O Brasil salvou afinal o seu regime democrático?
Sim. Mas, numa escala de 0 a 10, o país se sairia no máximo com uma nota 5, com suas famosas “instituições” precisando urgentemente de reformas profundas para enfrentar uma recuperação que se avista como extremamente difícil. A eleição de hoje no Senado é a prova mais cabal disso.