Flerte aberto com o autoritarismo, ou Até onde vai a degradação institucional?

Que Jair Bolsonaro sempre foi um adorador de ditaduras e nunca demonstrou grande apreço pela democracia, isso até as pedras do asfalto sabem. Que seu entorno – filhos, aspones mais próximos e alguns ministros de renome – também compartilhassem dessa mesma visão, coisa é que não admira nem causa consternação. O que admira e causa espanto é ver o representante maior do suposto “núcleo racional” do Governo – Paulo Guedes – embarcar também na onda autoritária e ameaçar as ruas – até agora quietas – com o retorno do famigerado AI-5.

Explicar o que foi o Ato Institucional nº. 5 é algo completamente fora de propósito (para saber mais, clique aqui). Hoje, alguém que pelo já ouviu falar pelo menos de orelhada do mais extravagante e cruel ato da ditadura militar certamente terá a sua opinião formada. Há aqueles que reconhecem e sabem o que foi o AI-5: a pior coisa de todo o regime militar (felizmente, ainda a maioria). E há aqueles que habitam um mundo tosco e néscio, que negam não somente a ignomínia do ato, como a própria existência de uma ditadura militar (a minoria, mas que parece cada vez maior).

O que espanta, na verdade, não é a ignorância que parte da população insiste em exibir com orgulho nas redes insociáveis sobre a desgraça que foram os militares no poder. Para boa parte dos convertidos, “verdade” é somente aquela que transita na forma de memes pelos grupos de WhatsApp. O que assusta é ver a recorrência com a qual pessoas do governo, em número cada vez maior e com cada vez mais naturalidade, insistem em recorrer à ameaça do rompimento da ordem democrática para enfrentar hipotéticos levantes populares de ruas que se encontram por ora em obsequioso silêncio.

Pra piorar, a cada surto verborrágico de autoritarismo não corresponde uma resposta à altura da agressão. Entre o medo pusilânime de não querer atiçar a fera do autoritarismo e o adesismo carreirista incontido em seu anseio, os responsáveis pela defesa da democracia limitam-se a reprovações protocolares, que logo são esquecidas no próximo surto verborrágico.

Na verdade, já passou da hora de as instituições darem um basta a esse flerte desenvergonhado com a quebra da ordem democrática. Até agora, o padrão tem sido irritantemente o mesmo: alguém do governo fala uma bobagem sem tamanho, insiste na besteira que disse e, depois de alguma rebordosa, vem a público dizer que não disse o que havia dito, colocando sempre a culpa na “mídia” ou nos “comunistas” de plantão. Depois de algum tempo, as provocações se renovam, sempre aumentando um tico no nível da ameaça e no grau de desplante. E assim, um pouco a cada dia, o ambiente democrático-institucional vai se degradando cada vez mais.

Parece piada, mas não custa lembrar que ameaças à ordem democrática constituem crime tipificado na Lei de Segurança Nacional. Ela, que sempre costuma ser invocada pelos bolsonaristas mais empedernidos para justificar atos hipotéticos de repressão, é clara como a água ao determinar ser crime “fazer em público propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”. Pedir simplesmente desculpas não elide a incidência no tipo penal, a despeito do que diga a “Doutrina Sérgio Moro” a esse respeito.

Olhando-se de fora, o plano das vivandeiras que habitam certos setores do Governo parece claro: apoiar-se na ainda incipiente recuperação econômica para aprovar medidas de exceção (GLO em todo o país e a tal “excludente” de ilicitude”, por exemplo), tal como previsto aqui. Isto posto, quando e se ocorrerem manifestações de rua, estará aberto o caminho para reprimir a insatisfação popular, garrotear o Congresso e censurar a mídia. Quando isso acontecer, não precisaremos mais falar em AI-5. Já estaremos vivendo numa típica ditadura.

Não basta, portanto, expressar objeções desenxabidas ou reclamar em forma de mumunha. É preciso ação. E, se for para usar palavras, que pelo menos se recorra à força do discurso de Ulysses Guimarães na proclamação da Constituição de 1988:

“Traidor da Constituição é traidor da Pátria!”

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