Parece que estava escrito.
Desacreditada por muitos, rejeitada por vários e ansiada por inúmeros, a eleição de Jair Bolsonaro é agora um fato incontornável. Pelos próximos quatro anos, o polêmico ex-capitão do Exército exercerá a Presidência da República. Com isso, automaticamente se tornará chefe de gente cuja patente ele jamais chegou a sonhar na ativa. E a pergunta que todo mundo está se fazendo agora é: o que esperar de um governo Bolsonaro?
Não se trata de uma pergunta trivial. Afinal, do sucesso ou do fracasso de Bolsonaro dependem, direta ou indiretamente, a vida de 200 milhões de almas. Embora todo o exercício de futurologia esteja intrinsecamente carregado de alguma dose de chutometria, é necessário pelo menos tentar compreender o que pode se passar no próximo quadriênio.
Que Bolsonaro assumirá um país dividido, fraturado até a medula, era algo mais ou menos esperado. Fosse quem fosse o vencedor, com os contendedores que estavam em disputa, dificilmente seria possível esperar um país em harmonia, pacificado pelo sagrado exercício do sufrágio. Já havia sido assim em 2014, com o embate entre Dilma e Aécio. Portanto, sob esse ângulo, não há muita novidade a se comentar.
2014, no entanto, pode servir de ensino e alerta ao próximo presidente. Guardadas as devidas proporções, Bolsonaro tem mais a ver com Dilma do que com Aécio, por exemplo. Ambos ostentam pouquíssimo traquejo político e elegeram-se como “apolíticos”. É bem verdade que Dilma tinha a máquina do PT por trás, mas sua principal bandeira de campanha era a imagem da “gerentona” que não se imiscuía no jogo baixo da política ordinária. Em razão disso, ela estaria imune a pressões venais do baixo clero.
Da mesma forma, Bolsonaro, em que pese seus sete mandatos federais em sequência, elege-se como elemento “anti-sistema”. Sua maior plataforma de campanha, além de se opor ao PT, foi propagandear sua “honestidade” por não estar envolvido nos grandes escândalos de corrupção dos nossos tempos, Mensalão e Petrolão em especial. Por isso a legitimidade que teria para “mudar isso daí”.
Obviamente, depois que o sujeito senta na cadeira, tudo muda de figura. Como o exemplo de Dilma Rousseff bem demonstrou, presidente que se recusa a negociar com o Congresso termina ou deposto ou com o governo paralisado (ou ambos, como foi o caso de Dilma). Bolsonaro pode muito bem querer montar um ministério com seus “notáveis”, Sérgio Moro e Paulo Guedes à frente. Mas se se recusar a mercadejar a infinidade de cargos em confiança colocados à disposição do presidente, será apenas uma questão de tempo até que enfrente uma revolta congressual que emparedará o seu governo. Nesse caso, terá uma de duas opções: ou se rende ao jogo miúdo e abraça a politicagem nossa de cada dia; ou dobra a aposta e paga pra ver. Nesta última hipótese, o risco de a coisa degringolar é bem alto.
Bolsonaro não será somente presidente eleito. Será um presidente eleito oriundo das Forças Armadas, com uma equipe formada por gente da reserva e grande respaldo na caserna. Pior. Já se anuncia que muitos militares ocuparão cargos-chave na nova administração. Some-se a isso a massa de eleitores convictos de que o ex-capitão recebeu algum tipo de missão divina para “salvar o Brasil do comunismo” ou coisa que o valha. Se Bolsonaro resolver partir para algum tipo de enfrentamento contra as instituições, é difícil saber até onde a frágil democracia brasileira seguraria o tranco.
Pode-se imaginar – e aqui opera-se no campo da mais pura especulação – que dificilmente haveria um golpe tradicional, daquele com tanques na rua, fechamento do Congresso e prisão de opositores. No mundo do século XXI, ditaduras-raiz são só aquelas que já estão estabelecidas. Mesmo em regimes reconhecidamente ditatoriais como a Venezuela não ocorreu semelhante coisa. O mais provável, se vier a ocorrer o pior cenário, é um processo progressivo de “ditadurização” do poder. Algo que se pode identificar com mais ou menos clareza na Turquia de Erdogan, por exemplo.
Nesse caso, poderíamos ver mudanças pontuais na legislação, respaldadas pelo amplo apoio popular do presidente e implementadas por uma burocracia sedenta pela possibilidade de uso abusivo do poder. E nem adiantaria pensar no Judiciário como salva-vidas. Não só porque o Supremo Tribunal Federal tem um longo histórico de subserviência ao Executivo de plantão, mas também porque grande parte da juizada – em especial a federal – quer mais é embarcar na onda bolsonarista. Vide, por exemplo, o que ocorreu nas universidades federais na semana passada.
Obviamente, tudo isso pode não se materializar e esse texto pode ser encarado como ridículo daqui a quatro anos. Convém, no entanto, colocar as barbas de molho. Quando Getúlio aceitou convocar uma constituinte em 1933 e se submeter a eleições gerais no ano seguinte, todo mundo achou que a fera estava domada e que o arcabouço legal seria o bastante para enquadrar o caudilho sulista.
Deu no que deu.
Pingback: Flerte aberto com o autoritarismo, ou Até onde vai a degradação institucional? | Dando a cara a tapa
Pingback: 9 anos Dando a cara a tapa – Semana especial de aniversário: O Brasil em 2020 | Dando a cara a tapa
Pingback: Sinal dos tempos, ou A denúncia contra Glenn Greenwald | Dando a cara a tapa