É fato: criança nenhuma gosta de Português. Ao lado da Matemática e das Ciências, a língua-mãe constitui a trindade amaldiçoada dos miúdos em idade escolar. A ojeriza só vai passar – se passar – no final da adolescência, quando a correção dos textos escritos começam a traçar a linha divisória entre os que vão ser bem sucedidos na vida e, bem, aqueles que de algum modo ficarão pelo caminho.
Com Sarah não era diferente. Do alto de seus 10 anos de idade, a menina queria saber de tudo, menos do vernáculo. Bonecas, brincadeiras, artes, jogos na escola… Qualquer coisa valia se servia de desculpa para não estudar o maldito português.
Mas a avó de Sarah não iria deixar barato. Antiga professora do Liceu, amante da prosa de Machado e dos versos de Pessoa, a avó de Sarah podia ouvir qualquer um reclamando da vida, dos astros ou da programação dominical na TV. Só não podia ouvir alguém falando que estudar a língua pátria “não servia de nada”.
Para mudar a cabeça da criança e torná-la uma amante das letras, a avó firmou um pacto com Sarah: todas as tardes, a menina iria à sua casa estudar Português. Ao final, resolvendo os exercícios propostos, Sarah ganharia passe-livre para ir brincar em um parque de diversões ali perto.
De olho na recompensa, Sarah transformou-se numa traça. Os livros que a avó lhe colocava diante dos olhos eram devorados numa velocidade assustadora. Em pouco mais de um mês, Sarah saiu do “menas” para o “reconduzir-se-ia”, sem saltar as orações subordinadas e coordenadas.
Tudo ia bem. Um dia, no entanto, como sua mãe estivesse muito cansada, resolveu ficar para puxar um ronco enquanto a avó ensinada à filha:
“Posso dormir hoje à tarde aqui?”, perguntou Vera, a mãe de Sarah.
“Claro que pode”, respondeu a mãe, sempre pronta a atender os desejos da filha.
Quando Sarah terminou a tarefa, sua mãe ainda estava a dormir.
“Espere um pouco, minha filha. Quando sua mãe acordar, você vai ao parque com ela”, explicou a avó.
“Ah, não, vó! Eu quero ir agora!”, respondeu impacientemente a menina.
Não teve jeito. Irredutível, a avó bateu o pé e disse que a criança só sairia dali com sua mãe ao lado.
As horas passavam e a impaciência de Sarah só aumentava. Foi quando a menina teve uma terrível idéia:
“Vou pegar uma panela e, disfarçadamente, derrubar no pé da cama da minha mãe. Assim ela acorda e eu posso ir pro parque”, arquitetou de maneira diabólica a menina.
Sorrateiramente, Sarah se esgueirou pela cozinha e pegou uma daquelas panelas de alumínio de 5 litros, com tripla camada de cobre no fundo. Pé ante pé, a criança foi para o quarto onde estava a mãe. Como quem não quer nada, deixou as alças do recipiente escorregarem pelos dedos.
Quando a panela foi ao chão, foi como se houvesse um terremoto no apartamento:
“Menina, que diabo é isso?!? Tá querendo me matar de susto!?!”, acordou gritando sobressaltada a mãe da criança.
Do outro lado, apenas o silêncio, acompanhado de um sorrisinho irônico, do tipo “sacaneei, hein?”
“E você ainda tem a desfaçatez de me sorrir?!?” – prosseguiu uma enfezada mãe – “Pois agora você vai é apanhar!!!”
Sarah ainda tentou correr pelo apartamento, mas o braço da mãe foi mais rápido e alcançou-lhe antes da fuga. O cinturão começou a comer. Foi quando Sarah pensou em recorrer à avó em busca de ajuda:
“Vó, me ajuda, por favor!”, implorou Sarah.
Ao que a avó respondeu:
“E, depois disso, você ainda me erra a colocação pronominal?”, constatou a avó. “É isso aí, Vera. O negócio é meter-lhe a peia!”
E nunca mais Sarah voltou a errar a colocação pronominal na vida.