Quase todo dia, os jornais apresentam algum escândalo envolvendo personagens da cena política. Seja de baixa patente, seja de alto coturno, os políticos apanhados com a boca no botija invariavelmente têm seus nomes associados a uma dessas excentricidades da fauna nacional: os doleiros. E o sujeito que está em casa fica a se perguntar: por que raios quase todo escândalo tem um doleiro envolvido?
Para responder a essa pergunta, é necessário explicar a razão de ser dos doleiros.
Doleiro, para quem não sabe, é o sujeito que detém uma casa de câmbio. Como todo comerciante, ele vive de vender mercadorias. No caso deles, uma mercadoria especialmente valiosa: dinheiro. Comprando e revendendo moedas estrangeiras pelas nacionais, o sujeito consegue tirar o dinheiro para encher a sua própria geladeira.
Mas como ele ganha dinheiro comprando e vendendo dinheiro?
Imagine, por exemplo, um americano que vem ao Brasil. São poucos os lugares onde ele poderá comprar qualquer coisa utilizando sua moeda nativa, o dólar. Para poder aproveitar as maravilhas existentes ao sul do Equador, ele tem de trocar os dólares por reais.
É aí que entra a casa de câmbio. O sujeito troca, por exemplo, US$ 1.000,00 por R$ 2.000,00. Uma cotação, portanto, de R$ 2,00 para cada US$ 1,00. Horas depois, entra um brasileiro querendo viajar pros Estados Unidos. Como sua viagem é curta, ele vai precisar só de US$ 1.000,00. Só que, ao vender os US$ 1.000,00, ele não vai utilizar a mesma cotação pela qual comprou a moeda americana. Vai usar, por exemplo, uma cotação de R$ 2,20. E aí, ao revender os US$ 1.000,00 que comprou por R$ 2.000,00, o cidadão vai receber R$ 2.200,00. Um lucro, portanto, de R$ 200,00. Isso é o que acontece no mundo da legalidade.
No mundo da ilegalidade, o sujeito da casa de câmbio se transforma no famigerado doleiro. O que ele faz?
Imagine, agora, que você é um político corrupto. Recebeu R$ 10 milhões de uma empreiteira a título de propina, para dirigir uma licitação. Obviamente, você não vai poder declarar à Receita que recebeu esse dinheiro, pois não teria como justificar um aumento tão grande em seu patrimônio. Da mesma forma, você tampouco poderá depositar o dinheiro na sua conta. Primeiro, porque valores desse porte são rastreados pelo Banco Central. Segundo, porque no final do ano esse depósito seria informado pelo seu banco à Receita, e novamente não haveria como explicar a sua origem. Como guardar R$ 10 milhões embaixo do colchão é algo fora de cogitação, o que resta ao corrupto?
A solução passa pelos famosos paraísos fiscais. O sacana abre uma conta numerada no exterior, sem qualquer identificação de quem é o seu titular. Isso garante o sigilo, mas não uma providência prática: como levar o dinheiro até o paraíso fiscal para depositar na conta secreta?
É aí que aparece o doleiro. Como a maioria das casas de câmbio atua em convênio ou tem filiais no exterior, é comum a transferência internacional de dinheiro entre elas. Pode levantar suspeitas um sujeito que ganha R$ 10 mil por mês fazer uma transferência de US$ 100 mil pro exterior. Outra coisa, no entanto, é essa mesma transferência entre duas casas de câmbio, acostumadas a movimentar milhões por mês.
Daí pra frente, o esquema funciona da seguinte maneira: o sujeito entrega o dinheiro pro doleiro, o doleiro faz uma transferência em seu nome para uma filial no paraíso fiscal, e, finalmente, a filial no paraíso fiscal deposita o dinheiro na conta secreta do cidadão corrompido. O doleiro, portanto, atua para dificultar o rastreamento de dinheiro obtido de origem ilícita. Ou, de mais mais clara, o doleiro é o grande lavador de dinheiro sujo no mundo dos negócios.
Mas o que é que o doleiro ganha com isso?
Simples. Voltemos ao exemplo do político corrupto. Os R$ 10 milhões que ele recebeu valeriam, por exemplo, US$ 5 milhões. Ao invés de depositar US$ 5 milhões na conta numerada do político, ele deposita “apenas” US$ 4,5 milhões. US$ 500 mil ficam de comissão pelo “serviço”.
Não se trata, é claro, de uma exclusividade nacional. Bancos de vários paraísos fiscais, inclusive e principalmente os suíços, já foram inclusive condenados pela justiça dos Estados Unidos por terem oferecido seus bons préstimos a sonegadores do fisco americano. A diferença dos lavadores nacionais é que não existe uma grande estrutura por trás do esquema de lavagem. A relação é particular, pessoal, como nas melhores famiglias sicilianas.
Enquanto houver corruptos no Brasil, haverá gente disposta a lavar o dinheiro da corrupção. Ou seja: ainda ouviremos falar por muito tempo em doleiros.
Triste sina brasileira…
Matéria muito boa!!!
Obrigado, Breno. Um abraço.
Texto muito esclarecedor. E bem escrito, o que não é lá muito comum na net…
Agora eu sei o que faz um doleiro!
Parabéns!
Obrigado, Reinaldo. Muito gentil da sua parte. Um abraço.
Poxa eu ia ado raro lavar dinheiro. Já que ninguém vai preso
Ótimo texto. Uma coisa que sempre fico me perguntando: nesse caso, o ladrão recebe os 10 milhões em dinheiro vivo da empreiteira? E leva todo esse dinheiro vivo ao doleiro? Ou existe alguma outra forma da empreiteira transferir esse dinheiro ao ladrão?
Normalmente sim, Renato. Por isso de vez em quando é comum vermos notícias de grandes somas de dinheiro viajando em malas, cuecas ou outras peças íntimas quaisquer. Há, evidentemente, outros meios, mas todos eles deixam rastros. Por isso, o mais “seguro” para os bandidos é o transporte de dinheiro vivo, mesmo. Um abraço.
E como é que uma empresa consegue sacar 10 milhões em dinheiro vivo sem chamar a atenção da Polícia Federal ou mesmo do Banco Central? Como esse dinheiro sai da contabilidade da empresa? Quem emite a nota fiscal?
Gostei da explicação. Valeu!
Parabéns pela matéria. De escrita simples e direta. Abraços
Obrigado, Isa. Um abraço.
E quantô o doleiro pagaria de imposto dos R $ 10000000 para transferir para o exterior
Agora entendi esse procedimento dos doleiros; mas este, é conhecido e suas ações tem de ser parecidas com a dos cidadãos normais. Por que não impõem limites à essa transferência de divisas com justificativas expressas, ou melhor proíbam isso?
Boa parte pode ser creditada à pura e simples omissão do governo, Gilberto. Mas acredite que parte disse também pode ser simplesmente conivência. Tem muita gente interessada em deixar as coisas exatamente como são. Um abraço.