Memórias póstumas de Brás Cubas

Hoje vi uma notícia que me deixou intrigado. O professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e crítico literário João Cezar de Castro Rocha lançou um livro chamado “Machado de Assis: Por uma poética da emulação“. Não li o livro ainda, mas a resenha deixa bem claro qual é a tese do autor: Machado de Assis só escreveu Memórias Póstumas de Brás Cubas por inveja do sucesso que Eça de Queiroz teve por estas bandas com O Primo Basílio.

Memórias Póstumas de Brás Cubas

De fato, alguns fatos pontuados por João de Castro Rocha abonam sua tese. Até então, Machado se circunscrevera a um romantismo quase proselitista. A beleza de sua escrita combinava-se com o vazio de seus personagens para compor um cenário quase idílico. “Medíocre”, como diz João Cezar? Não chegaria a tanto, diria eu. Mas pode-se dizer, não sem alguma audácia, que se tratavam de romances banais. Assim como os filmes da Sessão da Tarde, você poderia lê-los e, meia hora depois, não se recordar sequer o nome das personagens.

Fora isso, é de fato curioso que Memórias Póstumas tenha vindo cronologicamente em seqüencia a O Primo Basílio. Como crítico literário, o Bruxo do Cosme Velho detonou a obra em sua coluna da Gazeta de Notícias. Quando foi mais elogioso, disse que da obra não se aproveitava “nada”. Criticou o vazio das personagens e o non sense do romance entre Luísa e Basílio, que se apaixonariam do nada, sem atrações escondidas, sem jogos de amor, sem sequer arrebates sexuais. Embora não tenha dito, Machado meio que denuncia o realismo de Eça como algo quase niilista, tal é a falta de propósito das personagens.

Se de fato Machado resolveu escrever Memórias Póstumas por inveja de Eça, é julgamento que deixo para quem for ler a obra do professor carioca. Meu interesse aqui é falar daquela que, na minha opinião, representa a mais revolucionária, a mais inovadora e – perdoem-me os puristas – a mais relevante obra da literatura nacional.

Mesmo quem não leu o livro sabe mais ou menos a história. Brás Cubas era um bon vivant, a quem coube a boa fortuna de nunca precisar comprar um pão com o suor do seu rosto. Morto, resolve deitar a pena na história da sua vida. Irônico do começo ao fim, Brás Cubas dedica o livro ao “verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”. Como se descobriu escritor somente no além, define-se a si mesmo não como um “autor defunto”, mas como um “defunto autor”.

Em uma narrativa cáustica, Brás Cubas rememora episódios marcantes de sua vida. A sinceridade com que expõe os próprios defeitos e até mesmo os desejos mais infames por vezes choca o leitor, ao que o narrador imediatamente replica que “a franqueza é a primeira virtude de um defunto”. Do outro lado da vida, não há razão para se preocupar com mesuras e aparências; a morte é essencialmente libertária das convenções sociais. Depois de perpassar toda sua vida e verificar, no seu capítulos Das negativas, que nenhum dos seus grandes sonhos de realização havia-se cumprido, Brás Cubas descobre-se “com um pequeno saldo”: “Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria“.

Memórias Póstumas inaugura um novo estilo de literatura. Não o realismo “seco” de Eça de Queiroz, mas um “realismo” sutil, psicológico, que conduz a um só destino: a reflexão do leitor sobre aquelas personagens e seu próprio estilo de vida. Sem ser panfletário, Machado critica de forma profunda o vazio burguês atrás do qual se escondia a mediocridade de seus integrantes.

A revolução representada por Memórias Póstumas provavelmente ainda não foi compreendida em sua inteireza pelos professores de literatura nacional. Muita gente gosta de dizer – sem ter lido – que o maior romance brasileiro é Os Sertões. Mas alguém pode imaginar Vidas Secas, Grande Sertão: Veredas e a própria obra imortal de Euclides da Cunha se não houvesse antes Memórias Póstumas a lhes abrir o caminho? O padrão estético, o realismo e a própria definição daquilo que se entende por “literatura brasileira” encontram suas raízes naquele livro escrito pelo Bruxo do Cosme Velho. Se Machado não tivesse ousado colocar nas mãos de um cético advogado morto “a pena da galhofa” e a “tinta da melancolia”, possivelmente hoje ainda estaríamos vivendo de cópias dos romances franceses do século XVIII. Memórias Póstumas, portanto, não é só um livro. É parte essencial da formação da identidade nacional.

Se tudo isso foi motivado pela inveja a Eça de Queiroz, não sei.

Mas, ainda que tenha sido, quem se importa?

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3 respostas para Memórias póstumas de Brás Cubas

  1. Mourão disse:

    Gostei de sua crítica literária, porém não sei até que ponto Machado de Assis influenciou Euclides da Cuinha, autor de uma única obra, por sinal magnifica, particularmente, eu acho, na parte que trata do Homem, rica descrição do sertanejo, e Guimarães Rosa. Este, principalmente, por se tratar de um autor do modernismo regionalista, mesma escola de Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Por sinal o regionalismo modernista de Guimarães Rosa deixa de dar ênfase à paisagem para focalizar o ser humano. Dessa maneira, as personagens revelam tanto suas particularidades regionais como sua dimensão universal, oque representa, também,Aa valorização da cultura sertaneja , no que em nada ou quase nada se assemelha a Machado, .

    • arthurmaximus disse:

      Na verdade, Comandante, o que quis dizer não foi que Machado de Assis influenciou Euclides da Cunha, mas que, de certa maneira, Memórias Póstumas de Brás Cubas representa o marco inicial da moderna literatura brasileira. Sem ele, toda uma geração poderia ficar presa a modelos de linguagem e de abordagem formulados por escritores de outros países, sem muita identidade com a nossa cultura. Por isso é que, na minha modesta opinião, Memórias Póstumas representa o “grito de independência” da literatura brasileira. Um abraço.

  2. Mourão disse:

    Concordo meu caro aristocrata .( Uma variação nada ortodoxa de Senador.)

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