Na seqüência do julgamento do mensalão, esta semana começou agitada com as “análises” dos votos proferidos na segunda-feira, em especial o voto do Ministro Luiz Fux. Os comentaristas de plantão e – claro – os advogados de defesa vieram logo a lançar um “sinal de alerta”, de que a “relativização do conceito de prova” colocaria em risco a própria democracia. Houve até quem falasse de uma “inversão do ônus da prova” em desfavor do réu. Agora, com o voto de Fux, seria o réu quem teria de “provar sua inocência”.
Confesso que, ao ver as notícias, fiquei um pouco assustado. Afinal, impor ao réu o ônus de provar sua inocência é violação de um dos princípios mais básicos do Processo Penal: compete ao Ministério Público comprovar o cometimento do crime. O réu, em princípio, nem precisa abrir a boca; basta ficar calado. O MP é quem tem de se coçar.
Para entender o que se passara, fui assistir à sessão de segunda-feira do STF. Depois de revisitar o voto de Luiz Fux, posso dizer: poucas vezes vi uma “análise” tão apressada e canhestra de um voto quanto neste caso.
Juiz por ofício, processualista por opção, Luiz Fux sempre foi um dos mais conceituados estudiosos do processo no país. Processo Civil, é verdade, mas que, em muitos casos, encontra diversos pontos de contato com o Processo Penal. Nesse caso especificamente, embora parta de pressupostos legais previstos no Código de Processo Civil, o raciocínio desenvolvido por Fux é plenamente aplicável ao Processo Penal.
A questão é a seguinte: no Processo Civil, compete ao autor da ação o ônus de provar “o fato constitutivo do seu direito” (art. 333, inc. I, CPC). Transladando-se esse dispositivo para o Processo Penal, compete ao Ministério Público provar que: 1 – o crime existiu (materialidade); e 2 – o réu o cometeu (autoria).
Imaginemos, portanto, um hipotético crime de corrupção passiva. Alega-se que o réu recebeu R$ 100 mil para “dirigir” uma licitação em favor de determinada empresa. Nesse caso, o MP tem de provar: 1 – o direcionamento da licitação; e 2 – que o réu recebeu R$ 100 mil. Suponhamos, então, que esteja provado o direcionamento e que o próprio réu confesse o recebimento dos R$ 100 mil. Em tese, isso basta para configurar a culpa e atrair a condenação.
No entanto, o réu alega que os R$ 100 mil não tem nada a ver com a licitação. Alega, vamos supor, que ele – arquiteto de ofício – recebeu os R$ 100 mil como pagamento de um projeto da cozinha do novo apartamento do sujeito beneficiado pelo direcionamento, mas que ele acabou desistindo.
O que fazer nesse caso? Competirá então ao Ministério Público provar que os R$ 100 mil não são relacionados ao projeto da nova cozinha do corruptor?
É claro que não.
Como explicou o Ministro Luiz Fux, valendo-se didaticamente da analogia com o CPC, quando o réu, reconhecendo serem verdadeiros os fatos imputados, opuser-lhes outros, “impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor” (art. 333, inc. II, CPC), compete a ele o ônus da prova. Nesse caso, ele teria de provar que fora efetivamente contratado para projetar a nova cozinha e que o pagamento de R$ 100 mil estava relacionado a esse trabalho. Não provou? Babau: cana nele.
Na verdade, há muito se reconhece a aplicação dessa teoria de distribuição do ônus da prova no Processo Penal. Desde sempre se definiu que o compete ao réu o ônus de provar o álibi liberatório da acusação. Sob esse ângulo, a inovação do Ministro Fux limita-se ao socorro à analogia com o CPC para explicar de forma pedagógica o que pretendia dizer.
Isso é um risco à Justiça ou à democracia?
Longe disso.
Quem lembra do caso Nardoni deve lembrar-se da alegação de que uma “terceira pessoa” entrara na casa para jogar a menor pela janela. Terceira pessoa essa que ninguém viu ou ouviu; sumiu sem deixar rastros.
Era crível a versão? Evidente que não. Da mesma forma que não seria crível acreditar que um sujeito recebera R$ 100 mil para projetar uma cozinha cuja construção jamais foi levada a efeito.
O raciocínio desenvolvido por Fux, na verdade, explicita que as brechas existentes no nosso Direito Penal são largas, mas não elásticas. Não basta ao réu simplesmente negar o crime alegando a primeira invencionice que lhe vem à cabeça. Provadas a materialidade e a autoria, a prova da versão diferente apresentada pelo réu compete única e exclusivamente a ele, e a mais ninguém.
Melhor viver em um país cujo sistema funciona assim do que em um no qual o réu finge que se defende – inventando qualquer coisa – e o juiz finge que julga – engolindo a invencionice.
Quanto à Justiça e a Democracia, vão bem, obrigadas.
Muito interessante.
Merci bien, ma cherie. Bissou.