Ontem o Senado aprovou uma emenda à Constituição que acaba com a votação secreta para a cassação de mandatos de parlamentares. À primeira vista, parece um saudável passo na direção do correto. À segunda vista, o lance está mais para encenação dos nobres senadores do que propriamente uma vontade de lançar luz sobre os subterrâneos das votações no Congresso Nacional.
Como se sabe, a votação dessa emenda deve-se ao processo de cassação do senador Demóstenes Torres. Flagrado usando seu mandato a serviço do jogo do bicho – y de otras cositas más -, Demóstenes tornou-se candidato ao mesmo cadafalso que ceifou o mandato de Luiz Estevão e salvou o de Renan Calheiros. Com o receio de que o anonimato seja utilizado para livrar a cara de Demóstenes, um grupo de senadores resolveu articular para derrubar o voto secreto. Expostos os votos à opinião pública, a chance de Demóstenes salvar seu mandato seria zero. Não à toa, todas as votações de seu caso até agora – com votações abertas – obtiveram unanimidade de votos.
O problema, a meu ver, não está exatamente na natureza do voto (aberto ou secreto). Está na qualidade ou mesmo na autoridade moral daqueles que depositarão sua vontade sob o manto secreto da urna. Para dar um exemplo do que falo, vale a pena relembrar um fato histórico.
O ano era 1968. Aproximava-se o 7 de setembro. Depois do consulado do Marechal Castello Branco, o país girava feito baranta tonta em torno do tosco e inoperante Costa e Silva. A tortura nos quartéis aumentava, e Costa e Silva, incapaz como só ele, não conseguia nem agradar à esquerda – que queria trazer de volta o Brasil à normalidade institucional – nem à direita – que achava que a repressão existente era pouca; queria mais liberdade de ação (leia-se: licença para torturar).
Foi nessa quadra que um deputado obscuro do parlamento, Márcio Moreira Alves, numa sessão sonolenta do Congresso, conhecida como “pinga-fogo”, resolveu fazer um discurso defendendo que as moças se negassem a dançar com os pracinhas nos festejos da Independência.
Aquilo que deveria morrer como mais um entre tantos discursos inúteis proferidos no Congresso, serviu de pretexto para deflagrar uma “crise” com o setor militar. Inconformados, os militares queriam a cabeça de Márcio Moreira Alves. Queriam porque queriam que o Congresso lhe cassasse o mandato.
Desde sempre, então e agora, os parlamentares são imunes por quaisquer palavras e opiniões verbalizadas no recinto do Congresso. Poderia até chover canivete, mas jamais um deputado poderia ser cassado pelo conteúdo de um discurso proferido na Câmara.
Costa e Silva enxergou nessa crise uma oportunidade para tentar ganhar o apoio dos setores mais reacionários das forças armadas. Mandou seguir adiante com um pedido de processo de cassação de mandato.
Um a um, Costa e Silva mandou chamar os deputados da Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido da ditadura. A todos repetia: Márcio Moreira Alves tem que ser cassado, para “aplacar” a animosidade do setor militar. Maioria absoluta na Câmara, a Arena sozinha era capaz de mandar o mandato de Márcio Moreira Alves pelos ares.
Costa e Silva não contava, contudo, com um gaúcho tão liberal (no sentido político) quanto decente: Daniel Krieger. Líder da Arena na Câmara, Krieger soube das pressões de Costa e Silva sobre seus liderados. Um a um, chamou todos eles ao seu gabinete depois de terem passado por Costa e Silva. A todos repetiu: hoje é Márcio Moreira Alves, amanhã poderá ser um de nós. Não se pode abrir mão das prerrogativas parlamentares. Do contrário, estamos fritos.
Salvaguardados pelo voto secreto, os deputados da Arena negaram a Costa e Silva o escalpo de Moreira Alves. O resto da história todo mundo sabe. A salvação do mandato de Márcio Moreira Alves serviu de pretexto para o AI-5, o fechamento do Congresso e para uma noite que duraria dez longos anos.
E daí?
Daí que se hoje o anonimato das urnas pode servir para salvar o mandato de figuras de ética discutível, ontem serviu para o exato oposto. O problema não está no voto secreto, mas quem se serve do escuro para trair o voto alheio. No escuro insondável do anonimato, há quem prefira exercitar a lascívia ao invés de elevar a própria consciência.
Fazer o quê? Culpa de quem colocou o pervertido lá. O voto secreto não tem nada a ver com isso.