Twitter x Moraes – Parte II, ou Afinal, o que é “censura prévia”?

Dando continuidade, de certa forma, ao discutido aqui na semana passada, a refrega entre o multibilionário sul-africano Elon Musk e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, segue firme nas redes insociáveis. Na base das “acusações” contra Xandão, estão os tais de “Twitter Files”. Segundo os seus “acusadores”, esses “documentos” pretendem ser a ponta-de-lança através da qual a rede mundial de extrema-direita denunciaria os “desmandos” do “ditador do STF”. Cascata maior não poderia ser imaginada

Pra começo de conversa, os tais “Twitter Files” são o nada embrulhado em torno de coisa nenhuma. Trata-se de comunicações internas entre os próprios funcionários do Twitter, reclamando das decisões do STF e da exiguidade de tempo para cumpri-las. Apesar de querer emular, com o nome, escândalos famosos como os “Pentagon Papers” (sobre a guerra do Vietnã) ou os “Panama Papers” (sobre a rede mundial de lavanderia de dinheiro), os “Twitter Files” não representam coisa nenhuma. Não só porque não contêm nenhuma informação relevante, mas também porque suas “fontes” são os sujeitos que ora estão subordinados ao sujeito diretamente interessado em inflar a “polêmica”: Elon Musk.

Hoje, por exemplo, deputados trumpistas do Partido Republicano – sem dúvida abastecidos por seus congêneres bolsonaristas tupiniquins – publicaram com ares de escândalo “decisões” do Xandão mandando retirar ou bloquear contas na rede social outrora conhecida como Twitter. A “falta de fundamentação” das “decisões” escancararia, nessa visão deturpada, a “arbitrariedade” de Alexandre de Moraes e a “censura” praticada pelo STF.

Faltou, contudo, explicar ao distinto público que ali não estavam propriamente as “decisões” do Xandão, mas somente os ofícios determinando o cumprimento das decisões (estas sim, por óbvio, devidamente fundamentadas). Assim como uma decisão de retirada de nome do SPC é efetivada a partir de um simples ofício expedido pela Secretaria da Vara, também essas decisões são comunicadas à rede social mediante a apresentação de um mero ofício.

Isso explica, portanto, porque as “decisões” não estão assinadas por Xandão, mas, sim, por um de seus juízes auxiliares. Da mesma forma, explica-se a razão pela qual os ofícios não contêm a “fundamentação” das decisões. Assim como o SPC em geral não é parte quando alguém ingressa em juízo contestando a inscrição da dívida de um banco, tampouco o Twitter é parte quando o Judiciário determina o bloqueio da conta da rede social de quem está se valendo do megafone oferecido por ela para cometer crimes.

Ultrapassado esse aspecto básico, pode-se discutir a sério o que parece ser o grande nó górdio das críticas feitas ao Supremo e aos inquéritos xandônicos: afinal, o bloqueio de contas em redes sociais constitui “censura prévia”?

Quem teve o desprazer de viver os tristes anos de Ditadura Militar no Brasil sabe bem o que é censura. Institui-se um departamento, através do qual toda obra literária, musical, cinematográfica, radiofônica ou televisiva, tem que passar pelo crivo dos censores, que autorizam ou não a publicação da dita cuja. E a autorização não é sequer definitiva, pois a censura aprovada pode ser revogada a posteriori, como aconteceu, por exemplo, com a música Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, um trocadilho nem um pouco discreto com o “cale-se” imposto pela própria censura, que somente os imbecis censores da Ditadura não conseguiram enxergar.

No nosso ordenamento jurídico, a regra é a liberdade de “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Como todo direito, este também se sujeita a limites (para saber mais, clique aqui). Do contrário, teríamos que considerar como inconstitucionais, por exemplo, os crimes de injúria, calúnia e difamação. Dada a absurdez dessa conclusão, parece óbvio que a liberdade de expressão – em qualquer das suas modalidades – também se sujeita a limites.

Estabelecida essa premissa, resta claro que o caso de Alexandre de Moraes contra o Twitter está longe de caracterizar “censura prévia”. Não é Xandão estabeleceu um departamento para escrutinar todo e qualquer pensamento que vai ao ar nessa rede social. A questão é, diante de reiterados abusos cometidos por indivíduos previamente determinados, o Judiciário intervém para tirar deles o megafone que a rede social lhes provê.

Veja que nem sequer o “pensamento” dos sujeitos bloqueados está tolhido. O que lhes é tirado é o poder de amplificar o discurso. Trata-se de medida razoabilíssima e plenamente compatível com nosso ordenamento constitucional, ainda mais quando os crimes praticados por esses cidadãos têm como alvo a própria democracia.

Curioso é também observar a ironia (e também a ignorância) de ver esses mesmos sujeitos irem se socorrer do ordenamento jurídico norte-americano para defender uma liberdade de expressão “absoluta, ampla e irrestrita”. Lá, onde o sujeito pode até queimar a bandeira do próprio país como forma de protesto (Texas vs Johnson), são aplicadas a três por quatro as chamadas gag orders, que nada mais são do que “ordens de silêncio”. Agora mesmo Donald Trump recebeu uma, relacionada ao seu julgamento pelo uso de dinheiro ilegal para comprar o silêncio de uma atriz pornô com a qual manteve um caso extraconjugal. E ninguém a sério, nem aqui nem lá, veio a público reclamar pela aplicação da First Amendment da Constituição dos Estados Unidos.

O que falta ao debate público, tanto em relação aos embates políticos quanto ao que é retratado na imprensa, é um pouco mais de conhecimento e um pouco menos de espuma.

Quanto à Constituição, vai bem, obrigado.

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