Depois de uma longa e involuntária ausência deste espaço – motivada, dentre outros problemas, pela quebra da máquina com a qual digito essas mal alinhavadas linhas -, eis que retornamos com os posts regulares do Dando a cara a tapa. E, dado o largo período de privação de escrita, tantos são os assuntos acumulados que é difícil estabelecer uma escala de prioridades entre eles. O leitor amigo, contudo, certamente concordará que, no meio do caos que nos rodeia, poucos assuntos causaram tanto impacto quanto a chamada “PEC Kamikaze”.
Escrita literalmente em cima das coxas do ex-líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, a proposta de emenda à Constituição nº. 1/2022 parece um monumento erguido à barafunda legislativa que tomou conta do país nesses últimos tempos. Poucos serão os casos em que uma proposta legislativa reunirá, a um só tempo: desfaçatez, quanto ao seu pressuposto; oportunismo, quanto à sua motivação; e inutilidade, quanto à sua eficácia.
A PEC envolve desfaçatez em seu pressuposto porque, como parece claro a qualquer néscio, não subsiste à mais perfunctória análise o alegado “estado de emergência” empregado para justificar o rol de “bondades” que ela traz. O texto da emenda constitucional estabelece claramente que o tal estado de emergência seria “decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”. Noves fora o fato de que os preços vêm subindo pelo menos desde o começo de 2021, já se passou quase meio ano desde que Putin resolveu invadir a Ucrânia. Se esse “atraso” não fosse o bastante, o valor do barril de petróleo, no dia de hoje, está pouco mais de 5% acima do nível em que estava em fevereiro de 2022, quando eclodiu a guerra na Ucrânia. Convenhamos, menos de 10% de aumento não é algo que possa ser caracterizado exatamente como “elevação extraordinária e imprevisível”.
A PEC envolve oportunismo quanto à motivação porque, se de fato a “emergência” era decorrente do aumento dos preços do petróleo, o que o aumento em R$ 200,00 do valor do Auxílio-Brasil tem a ver com isso? Ou a população que depende do benefício governamental está tendo problemas para abastecer os carros na garagem? Na verdade, o fato de terem enfiado na PEC uma forma de turbinar o antigo Bolsa-Família, limitando o aumento a dezembro deste ano, somente escancara de vez as pretensões eleitoreiras de quem foi responsável pela aprovação da matéria.
Por fim, a PEC é inútil quanto à sua eficácia porque dificilmente reverterá um quadro eleitoral que, hoje, desenha-se como absolutamente adverso ao Presidente da República. Tal como já foi escrito aqui, qualquer tentativa de querer transformar Bolsonaro em novo benfeitor das classes menos favorecidas esbarrará em um obstáculo intransponível: do outro lado está Lula, o “novo Vargas”, o “pai dos pobres”, o criador do Bolsa-Família. Por melhor que seja o marketing reeleitoral de sua campanha, seria necessário um mago para fazer com que Bolsonaro assumisse o lugar do torneiro bissílabo de São Bernardo no imaginário do povo carente que recebe o benefício. Nem mesmo o auxílio aos caminhoneiros ajudaria nesse quesito, repudiado que foi como “esmola” por líderes da classe. Assim como ocorreu quando foi aprovada da PEC dos Precatórios – feita para possibilitar o Auxíli-Brasil de R$ 400,00 – não há nenhuma razão para acreditar que a subida para R$ 600,00 vá causar impacto eleitoral significativo.
Todas essas questões, contudo, não dizem o pior sobre essa emenda. Se tudo isso estivesse sendo feito em um ano “normal”, a emenda seria apenas ruim. Feita nas coxas, com atropelos constrangedores sobre o regular rito legislativo e em pleno ano (re)eleitoral, a PEC representa um verdadeiro desastre para as instituições republicanas. Numa só tacada, foram enviados à lata do lixo a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Eleitoral e o Teto de Gastos. E, com eles, explodem-se também alguns dos princípios mais caros à nossa Constituição. Se antes havia um mínimo de regras para impedir que o incumbente de turno pudesse usar a máquina a seu favor, agora, com esse “precedente” aberto, abriu-se uma verdadeira caixa de Pandora. Ou alguém imagina que, na próxima eleição, estando o presidente (seja ele quem for) em desvantagem nas pesquisas, respeitará as regras fiscais em nome da manutenção da previsibilidade fiscal e da paridade de armas na seara eleitoral?
Doravante, estaremos condenados eternamente à conveniência e à capacidade de articulação legislativa do governo de turno, para sabermos se haverá ou não outros “estados de emergência” decretados às vésperas das eleições, somente para aplacar interesses eleitoreiros imediatos, sem ligar para as funestas consequências desses atos, tanto a nível político, quanto a nível jurídico.
Uma triste página, portanto, da história desta nossa sofrida República.
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