Dando sequência a esta curta semana especial no Dando a cara a tapa, vamos analisar o contexto do conflito russo-ucraniano sob o aspecto talvez mais relevante: o geopolítico. Se ontem a guerra foi analisada sob uma perspectiva puramente econômica, hoje vamos tentar descer às minúcias das conturbadas relações diplomáticas no leste europeu e de como o conflito pode se desenrolar conforme os interesses das maiores nações envolvidas no problema, direta ou indiretamente.
Para poder alcançar tal objetivo, o primeiro passo por certo é afastar o que há de barulho e o que há de torcida na análise é centrarmo-nos na análise dos fatos propriamente ditos. Somente isso pode garantir que não nos contaminemos pela palavra mais maldita em qualquer tipo de observação, aqui e alhures: as “narrativas” (argh!). Afinal, como diria Ésquilo, numa guerra, a primeira vítima é a verdade.
De um lado do espectro político, a direita mais radical verá em Vladimir Putin um ex-espião da KGB sedento de poder, isolado e paranóico, com tendências megalomaníacas de restauração da União Soviética ou mesmo da Rússia Czarista. Do lado da esquerda, a tendência míope de querer enxergar tudo sob o prisma enviesado do “anti-imperialismo ianque” acaba por denunciar o desejo incontido de ressurreição da “Grande Mãe Rússia”, como se a derrota inequívoca e acachapante de 1989 pudesse d’algum modo ser vingada pelo ditador “soviético” de turno. Aliás, voltar ao último ano da década de 80 é condição sine qua non para poder compreender como chegamos até aqui.
Com a queda do muro de Berlim, consagrou-se a vitória incontestável do chamado “mundo livre” contra os países integrantes da “cortina de ferro”. As cenas de alemães em festa em cima da outrora inexpugnável barreira que dividia a capital alemã traduziam de modo incontestável o abismo a separar esses dois mundos. Como disse John Kennedy no seu célebre discurso Ich bin ein berliner, “Freedom has many difficulties and democracy is not perfect, but we have never had to put a wall up to keep our people in, to prevent them from leaving us“ (“A liberdade tem muitas dificuldades e a democracia não é perfeita, mas nós nunca tivemos de erguer um muro para manter nosso povo nele, para impedi-los de nos deixar“). Esse acontecimento histórico, contudo, deixou feridas ainda não inteiramente cicatrizadas no mundo oriental, como a crise de agora está a demonstrar.
É fato que os americanos haviam se comprometido em limitar sua expansão ao leste à anexação da então Deutsche Demokratische Republik (“República Democrática Alemã”, ou simplesmente DDR). É fato, também, que os Estados Unidos e seus aliados quebraram essa promessa ao expandir a OTAN para além de Dresden. Isso, contudo, não apaga os seguintes fatos:
1 – A Ucrânia é uma nação independente, que abriu voluntariamente mão das armas nucleares sediadas em seu território para separar-se da Federação Russa, com a promessa de que sua integridade territorial jamais viria a ser violada por qualquer das então superpotências mundiais;
2 – A Rússia iniciou a guerra sem ter sido em momento algum atacada ou sequer ameaçada pela Ucrânia;
Qualquer ponto de vista que relativize esses dois fatos já começa errado, portanto. Como nação independente, a Ucrânia deveria poder se aliar ou se unir a quem quiser. Aqueles que enchem a boca para denunciar o “imperialismo norte-americano” parecem não se dar conta de que, ao fazê-lo, estão a legitimar o imperialismo russo. Ou não seria imperialismo querer obrigar uma nação vizinha a ficar sob a sua “zona de influência”, independentemente do que queira o seu povo?
Querer culpar os Estados Unidos ou a Ucrânia pelo que está acontecendo é, mal comparando, o mesmo que culpar a vítima pelo estupro que sofreu. É como se a Ucrânia tivesse saído na noite com roupas sumárias, exibindo seus dotes físicos por aí, “convidando” o agressor a tomá-la à força. Qualquer um familiarizado com a estultice desse raciocínio saberá identificar as semelhanças entre a argumentação da “vítima responsável pelo estupro” com a argumentação das “provocações da Ucrânia deram início à guerra”. No estupro, o culpado é o estuprador, ponto. Na guerra de agora, o culpado é o Estado agressor (no caso, a Rússia), ponto.
Estabelecida essa premissa, é possível identificar a razão pela qual as coisas parecem estar indo de mal a pior para Putin nessa parada, pelo menos até o momento. Sun Tzu já ensinava há mais de 2.500 anos que a guerra é um combate moral que é vencido nos templos antes mesmo de ser disputada. O ditador russo, esse “grande estrategista geopolítico” (risos), perdeu a batalha antes mesmo de dar as ordens a seu exército. Putin imaginava que seus movimentos devolveriam à Rússia o status de superpotência mundial e interromperiam o avanço ocidental sobre a outrora inacessível zona de influência soviética. Ao contrário do imaginado, contudo, os resultados foram os seguintes:
1 – Deu novo sentido existencial à OTAN, que tinha perdido a razão de ser com a queda da União Soviética;
2 – Reunificou a Europa, imersa em conflitos e dilemas hamletianos sobre ser ou não ser uma grande federação unificada;
3 – Colheu a maior crise econômica de sua história.
É um erro, porém, pensar que, por ter pedido a batalha por corações e mentes, Putin venha efetivamente a perder a guerra. Por mais erros que o Exército Vermelho tenha cometido desde o início dos embates, sendo subestimar a defesa ucraniana o maior deles, não passa pela cabeça de ninguém que a Ucrânia possa vencer militarmente o conflito. A desproporção de forças é evidente. E, dada a impossibilidade de contar com a ajuda de tropas externas, sob o risco de conflagração nuclear, o mais provável é que em determinado momento a Rússia consiga subjugar as forças ucranianas.
E aí?
Como já nos ensinaram as guerras do Vietnã (EUA), Afeganistão (URSS), Iraque (EUA) e Afeganistão II (EUA), vencer militarmente é uma coisa; vencer de fato é outra, bem diferente e mais complexa. Numa guerra de conquista, não basta destronar o governo inimigo. É necessário saber como se vai governar a nação que se erguerá dos escombros. Nesse sentido, há basicamente dois meios de fazê-lo: 1 – governar por meios próprios, reprimindo pela força a população conquistada; ou 2 – organizando um governo fantoche, formado por nacionais adesistas que se submetam aos ditames da nação invasora.
Descarte-se, por impraticável, a primeira hipótese. Já faz mais de um século que a história ensina que guerras de conquista não podem ser vencidas por nações invasoras. O volume de pessoal e de dinheiro necessários para manter uma força de ocupação indefinidamente em território alheio tornam política e economicamente inviável qualquer projeto de conquista. E há de se lembrar que a Rússia não é exatamente uma nação rica, muito pelo contrário, ainda mais agora, depois de depenada financeiramente pelas sanções ocidentais.
A segunda hipótese tem mais chances de prosperar, é fato. Contudo, para que o plano de ocupação funcione, é indispensável organizar um governo que conte com um mínimo de legitimidade perante a população vencida. Dado o desastre de propaganda protagonizado por Putin e o renovado sentimento nacionalista ucraniano despertado pela invasão, é difícil imaginar que os russos consigam organizar semelhante esquema. Os Estados Unidos, que são os Estados Unidos, tentaram fazer o mesmo no Iraque e no Afeganistão. Os resultados estão aí, para quem quiser ver.
O que se desenha para o conflito Rússia e Ucrânia, portanto, parece ser um cenário de verdadeiro atoleiro. A essa altura do campeonato, Putin não pode simplesmente voltar atrás na empreitada, sob pena de colocar sua própria posição pessoal em risco internamente. Por outro lado, ainda que tome Kiev e as principais cidades ucranianas, vai ser difícil imaginar que a Ucrânia simplesmente se renda e aceite passivamente ser reintegrada ao novo velho Império Russo. O que se desenha, portanto, é uma reprise da invasão da Chechênia, só que com um território e uma população quarenta vezes maiores.
Enquanto se atola na Ucrânia, Putin terá que se virar para enfrentar um isolamento internacional que nem a União Soviética nos seus piores momentos conheceu. Na votação realizada pela Assembléia Geral da ONU, os russos só colheram as simpatias da Coréia do Norte, da Eritréia, da Bielorússia e da Síria. Nem a aliada China e nem mesmo a outrora apadrinhada Cuba se animaram a votar a favor do ditador russo. Isso significa que a oligarquia russa, tão acostumada aos gostos e aos luxos ocidentais, terá de se acostumar com novos roteiros turísticos e dar adeus aos seus apartamentos em Paris.
Ironicamente, Vladimir Putin poderá enfim alcançar um objetivo perseguido pelos Estados Unidos desde pelo menos os primeiros atritos da Guerra Fria: isolar a Rússia dentro de si, apartando-a literalmente do mundo.
Por quanto tempo isso durará e como o mundo funcionará sem contar com a Rússia dentro dele?
Bem, aí só Deus sabe…
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