Afeganistão II, ou Os 100 dias do atoleiro ucraniano

Pois é, meus caros.

Para quem gosta de efemérides, nesta semana se completam 100 dias desde que o ditador russo Vladimir Putin resolveu atravessar a rua para escorregar na casca de banana que estava na outra calçada e decidiu invadir a vizinha Ucrânia. Para quem chegou um dia a acreditar na parolagem de que a guerra duraria uma semana, quem sabe alguns poucos dias, a marca centenária desmonta por completo a idéia de uma guerra curta, rápida e certeira, destinada a “decapitar” o governo de Volodymyr Zelensky.

Não que isso fosse inteiramente inesperado, muito pelo contrário. Quem acompanha o Blog pode testemunhar que o panorama que então se insinuava era rigorosamente este que agora está posto, tanto no cenário geopolítico, quanto no cenário econômico, e até mesmo suas implicações na política nacional. Embora muita água ainda vá rolar por debaixo dessa ponte, já se pode tirar desde logo algumas conclusões evidentes:

1 – So much for “Putin-grande-estrategista-pensador-enxadrista-que-se-preparou-por-dois-séculos-para-enfrentar-o-resto-do-mundo”.

Ao deflagrar o conflito ucraniano, Putin cometeu a maior besteira de seus mais de vinte anos de reinado neoczarista. Nunca a Rússia esteve tão isolada no mundo e nunca os riscos à sua própria posição como líder incontestável foram tão grandes.

É bem verdade que muito pouco ou quase nada se sabe sobre os meandros da política interna russa. Mesmo assim, os insistentes boatos que surgem aqui e acolá sobre o estado de saúde do ditador russo, e até mesmo sobre eventuais tentativas de assassinato contra a sua pessoa, deixam claro que Putin, no mínimo, não está numa situação confortável. Se isso vai ou não levar a uma mudança de regime, é difícil cravar neste momento. Todavia, é claramente visível uma trinca no cristal da ditadura neosoviética, o que, por si só, já coloca enorme pressão sobre Putin e seu entourage, que lutam agora não somente para prevalecer numa guerra estúpida, mas, sim, pela própria sobrevivência.

2 – So much for “aliança-oriental-militar-política-cultural-entre-Rússia-e-China-ameaçando-a-hegemonia-ocidental-no-mundo”.

Quando a guerra começou, “analistas” de Twitter começaram a vender a tese de que Europa e Estados Unidos tinham cometido um “erro” ao apoiar a Ucrânia contra a investida russa. Segundo os “çábios” de plantão, esse movimento jogaria a Rússia nos braços da China, que se firmaria como pólo central de poder, operando um verdadeiro reordenamento da geopolítica mundial.

É verdade que a China até agora não moveu uma só palha para demover Putin de seu intento expansionista. No entanto, é igualmente verdadeiro que tampouco a China mostrou qualquer tipo de apoio mais incisivo ao seu “aliado”. Afora manifestações protocolares pedindo por diplomacia e contenção de ambas as partes, a verdade é que até agora a China tem se mantido longe da guerra, o que deve ter frustrado não somente o ditador russo, mas também os idólatras que adoram festejar uma suposta decadência do “imperialismo ianque”.

No fundo, toda essa gente está descobrindo tardiamente o que parecia óbvio até mesmo para um beócio em relações internacionais. A China está pouco se lixando para o resto do mundo. Ou, mais especificamente, a China está pouco se lixando para outros interesses que não os seus próprios. No fundo, a China não quer marola – o que a guerra causa aos montes -, porque isso em regra prejudica sua posição na balança comercial mundial – pagando mais pelo petróleo que importa e causando recessão naquelas que são as maiores consumidores de seus produtos, as potências ocidentais.

Com suas próprias questões internas a resolver e com interesse zero em aumentar o tamanho da marola causada por Putin, pode-se intuir que a China atuará daqui pra frente da mesma forma com que tem atuado até agora: deixando as coisas ficarem como estão, para ver como é que ficam.

3 – So much for “sanções-internacionais-mais-bloqueio-de-reservas-causarão-descrédito-na-moeda-norte-americana-como-reserva-de-valor-e-levarão-à-desdolarização-da-economia-mundial”

Quando os Estados Unidos, juntamente com seus aliados, impuseram o bloqueio e o congelamento das reservas internacionais do Banco Central russo, os mais afoitos logo vieram advogar a tese segundo a qual o ato equivaleria a um “golpe fatal” na credibilidade do dólar, pois ninguém mais iria sujeitar suas reservas em moeda forte a algum tipo de sanção internacional unilateral. O movimento seria de tal ordem que todo o comércio mundial seria agora reordenado com a ascensão de novas moedas, que substituiriam o dólar em seu reinado de quase um século, causando uma débâcle considerável nos Estados Unidos. Ocorreria, em suma, uma “desdolarização da economia mundial” (risos).

Além de nada do que foi “previsto” ter acontecido, na verdade em muitos casos ocorreu justamente o contrário. O dólar passou a ganhar mais força e atingiu máximas frente a outras moedas fortes, como a libra, o euro e o iene. E por que isso aconteceu? Porque o dólar continua sendo a moeda de valor referencial para toda e qualquer transação em nível internacional.

Pode parecer trivial, mas “trocar” a moeda de valor referencial para o mundo não é exatamente como trocar de roupa. Alguém poderia imaginar, por exemplo, que daria certo negociar o petróleo russo em rublos (como mandou Vladimir Putin). No entanto, um contrato de compra e venda de petróleo envolve dezenas de outros contratos derivados dele, como o frete do produto e o seguro do transporte da mercadoria. E todos esses contratos continuam sendo cotados em dólar.

O que faz o dólar ser “o dólar”, portanto, não é somente o fato de os Estados Unidos serem a maior economia do mundo, mas principalmente o fato de que não há uma alternativa imediata à mão. Fora questões técnicas, como a falta de conversibilidade de possíveis moedas concorrentes (como o yuan), nenhuma outra moeda ostenta a liquidez – isto é, a capacidade de se trocar por ativos reais (carro, comida, alimentos, etc.) – que o dólar detém. A menos que alguém esteja pensando que o Bitcoin (mais risos) substituirá o dólar, as verdinhas americanas continuarão a dar as cartas no mundo ainda por um bom tempo.

Mas e a guerra? Quando ela acaba?

A essa altura do campeonato, é praticamente impossível de se prever. Com Putin tendo sua posição interna questionada, uma revolta interna que o destronasse poderia resultar no fim quase imediato do conflito. Entretanto, isso não está no horizonte próximo, nem ninguém teria a capacidade de prever com antecedência um movimento dessa magnitude.

Presumindo, portanto, que se mantenham as condições normais de temperatura e pressão ora existentes, dificilmente a guerra se encerrará antes do final do ano. Com o exército russo atolado e as potências ocidentais enviando cada vez mais armamentos para o exército ucraniano, uma vitória militar de qualquer dos lados torna-se a cada dia mais improvável.

E, se uma vitória nos campos de batalha torna-se militarmente impossível, a “solução” virá muito provavelmente por exaustão. Ou seja: quando um dos lados esgotar sua capacidade de guerra, seja por exaustão de recursos físicos, seja por exaustão de apoio político, o que, por definição, demora bastante tempo para ocorrer.

A verdade – é triste reconhecer – é que o conflito da Rússia com a Ucrânia parece que “veio para ficar”. Assim como tantas outras guerras no nosso passado (Vietnã, Afeganistão, Irã-Iraque), essa também parece destinada a ocupar um espacinho cada vez menor no noticiário nosso de cada dia. Até que um dia, muito tempo e muitos mortos depois, organize-se um armistício para devolver alguma racionalidade ao cenário.

Até lá, que Deus nos ajude…

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