Chegando ao final desta curta semana especial no Dando a cara a tapa, o leitor amigo deverá estar se perguntando: “E o Brasil no meio disso tudo? Como é que fica?”
Deixando propositalmente para o final, a análise sob os efeitos da guerra sobre o panorama político brasileiro envolve talvez o aspecto mais irrelevante quando se leva em consideração tudo que está envolvido na crise. Afinal, no meio de um conflito que pode eventualmente levar a uma apocalíptica troca de mísseis nucleares, quem no mundo irá se importar com o que acontece neste recanto esquecido do planeta? Mas, como somos brasileiros e temos que conviver, ao lado das crises internacionais, com as crises nossas de todos os dias, parece óbvio que a análise conjuntural revela alguma forma de interesse para o leitor amigo.
Do ponto de vista prático, a história ensina que as guerras têm pouco ou nenhum impacto no cenário político brasileiro. Com exceção da II Guerra Mundial, que, por conta do esforço de guerra norte-americano, alterou a matriz industrial brasileira e acabou resultando, após o seu final, na queda do Estado Novo, todas as demais não foram sequer dignas de nota por aqui. A I Guerra Mundial começou e terminou sem que nada de relevante se alterasse nestas terras onde canta o sabiá. Idem para as guerras da Coréia, do Vietnã e para todas as outras que se seguiram à queda do muro de Berlim (Iraque I e II, balcãs, Afeganistão e etc). Por que imaginar, então, que o conflito de agora será diferente?
Em primeiro lugar, há de se considerar que o presidente do Brasil é Jair Bolsonaro. Ele, que se elegeu prometendo a “desideologização” da política externa brasileira, acabou praticando o maior esforço de doutrinação ideológica jamais visto por estas bandas. Depois de se abraçar a Donald Trump e Benjamin Netanyahu (e ficar órfão dos dois), Bolsonaro parece ter enxergado em Vladimir Putin o “modelo de masculinidade” que ele próprio quer imprimir à presidência do país. Só isso pode explicar o fato de que o presidente tenha resolvido literalmente atravessar o mundo para escorregar numa casca de banana no outro lado do planeta. Ou quem iria registrar uma visita tão desimportante se não estivéssemos a menos de uma semana de uma guerra conflagrada?
Ao “prestar solidariedade” ao ditador russo, Bolsonaro deu curto-circuito na sua rede de apoiadores. Ele, que construiu sua plataforma política denunciando o “comunismo”, agora via-se gostosamente ao lado de um ex-agente da famigerada KGB, líder da nação que foi berço da Revolução Bolchevique. É sintomático, portanto, que Bolsonaro tenha tentado vender Putin como um “conservador”(risos). Trata-se claramente de uma estratégia de contenção de danos perante a sua base mais radical e ideologizada.
Isso, contudo, não deve ter lá grandes efeitos práticos. A uma, porque as pessoas que vociferam contra o “comunismo” continuarão a seguir o seu líder para onde ele for, simplesmente pela falta de alguma alternativa imediata à mão. A duas, porque, do lado da esquerda, o cenário nesse particular não é exatamente muito auspicioso. Vide, por exemplo, as declarações desenxabidas de Lula e outros líderes da esquerda brasileira pedindo pela paz, mas sem em momento algum condenar Putin ou a Rússia pelo conflito.
O ponto em que a guerra deve provocar algum alvoroço e causar impacto relevante no cenário político nacional é justamente aquele que mais chama a atenção em época de eleições: a economia. Flagelado pela pandemia, abatido pelo desemprego e corroído pela inflação, o bolso do brasileiro encontra-se em petição de miséria. Às voltas com a maior inflação desde o período Dilma e mal saindo do baque provocado pelo coronavírus, a economia brasileira está cambaleante e não dá mostras de que vá se sustentar em um cenário tão desafiador por muito tempo.
Para começar, a literatura econômica ensina que as guerras possuem um intrínseco efeito inflacionário. De modo a financiar o esforço de batalha, as nações envolvidas costumam gastar desmedidamente as suas fazendas, para poder fazer frente ao inimigo externo. Em tempos passados, esse efeito acabava ficando de certo modo restrito aos países conflagrados. Hoje, numa economia globalizada e com a cadeia de produção espalhada pelo mundo, é mais do que natural que esse efeito inflacionário se espalhe por todo o globo.
A fim de comprovar essa tese, nem é necessário citar o exemplo óbvio do petróleo e do gás. Basta lembrar do trigo, aquele cereal responsável pelo pão nosso de cada dia, pelas massas, pelo biscoitos. Embora o Brasil importe quase todo o trigo que consome da Argentina, é evidente que o seu preço será afetado pelo virtual alijamento da Ucrânia e da Rússia do mercado, responsáveis que são por quase 30% da produção mundial. Isso, claro, para não falar de outras commodities agrícolas, como a soja (que alimenta o gado) e o milho (que alimenta as aves), cujos aumentos certamente detonarão uma verdadeira reação em cadeia na grade alimentar brasileira.
Como desgraça pouca é bobagem, a guerra ainda promove um natural efeito recessivo na economia global. Em tempos de guerra, todo mundo instintivamente segura os gastos, porque ninguém sabe como estará o dia de amanhã. Para piorar, o conflito chega em um momento econômico criticamente delicado, com uma concertação de aumento dos juros por parte dos maiores bancos centrais do planeta, depois de um longo período de juros negativos e impressão de dinheiro como jamais vistos na história da humanidade. A combinação de aumento de juros com redução de liquidez tende a funcionar como verdadeiro torniquete financeiro nas economias centrais, sendo o aperto sentido quase como um estrangulamento de jibóia nas economias periféricas (nas quais se encontra o Brasil).
Sem alternativas à mão e com uma economia mundial entrando em franco terreno contracionista, nada leva a crer que Paulo Guedes vá poder fazer muita coisa para alavancar as chances eleitorais de Jair Bolsonaro neste ano. Muito pelo contrário. O mais provável é que se comecem a desenhar medidas ainda mais heterodoxas no campo fiscal para poder fazer frente às vicissitudes que se avizinham. Não custa lembrar que o último aumento da gasolina data de quase dois meses atrás, quando o barril estava a U$ 80,00. Nesta semana, o preço do óleo bateu os US$ 120,00 (50% a mais). Nesse caso, o salseiro tende a azedar de vez as relações do governo com a galera do dinheiro grosso (o tal do “mercado”). Basta ver o que aconteceu com a PEC dos precatórios. Uma nova PEC do tipo “kamikaze” potencializaria em dobro o estrago que sua antecedente provocou.
Com inflação em alta e economia em baixa (nenhum economista sério projeta mais do que 0,5% de crescimento para o PIB neste ano), tem-se um caldo que pode se revelar fatal para a reeleição do presidente da República. Querendo ou não, é sobre ele que recaem todos os louros e todas as culpas sobre o que acontece no cenário econômico. Na maratona reeleitoral, portanto, Bolsonaro parece condenado a correr com somente uma das pernas (a ideológica), porque a outra (a economia) estará fora de combate.
Resta saber, contudo, como seus adversários irão se aproveitar desse cenário.
Pingback: Afeganistão II, ou Os 100 dias do atoleiro ucraniano | Dando a cara a tapa