Se há uma coisa certa no Brasil é que, em termos de espuma, nenhum lugar é melhor para produzi-la do que Brasília.
Há pouco mais de um mês, a ministra Rosa Weber levou o pé à porta e acabou com a farra do chamado “orçamento secreto”. Confirmada a liminar por ampla maioria do Supremo, a cassação do orçamento secreto deflagrou um curioso processo de barata-voa na capital federal. Principais responsáveis e beneficiados pela farra, os presidentes das duas casas do Congresso, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, passaram a atuar em duas frentes. De um lado, buscam uma maneira de manter longe dos olhos do público quem pediu e quanto recebeu antes de a liminar ser proferida. Do outro, tentam convencer o STF a dar o dito pelo não dito, aceitando que as emendas já empenhadas sejam liberadas para pagamento.
Mas o que raios é esse tal “orçamento secreto”?
Baseado nas agora famosas “emendas do relator”, ou “RP9”, o orçamento secreto representava uma verdadeira excrescência contábil-institucional implementada em nosso país. Ao contrário das emendas convencionais, aprovadas por todo o Parlamento e com a indicação do nome e sobrenome dos deputados ou senadores responsáveis pela sua apresentação, as emendas de relator não tinham pai nem mãe. Repassava-se um ofício ao relator do orçamento, e este, por sua vez, encaminhava-o ao ministério responsável pelo empenho da despesa. Como a coisa toda era feita às sombras, no final ninguém ficava sabendo quem tinha mandado pagar aquela emenda; somente o próprio relator, o parlamentar que fizera o pedido e, claro, os responsáveis por essa deformação institucional: Arthur Lira e Rodrigo Pacheco.
Não é preciso ser doutor em direito constitucional para perceber a flagrante inconstitucionalidade dessa farra concebida de “emendas do relator”. O princípio mais fundamental da República é de que a coisa (“res”) é pública, como diz o próprio nome. Não pertence a nenhum indivíduo nem pode ser tomada como sua por agentes temporariamente investidos em cargos de autoridade, por maior que seja o escalão em que se encontrem. Portanto, o principal dever dos representantes eleitos pela população é prestar contas quanto à forma com a qual se gastam os dinheiros que lhe são tomados na forma de tributo. O que o orçamento secreto faz, no final das contas, é o oposto disso, permitindo que a grana dos impostos corra solta sem qualquer fiscalização, longe dos olhos do grande público.
Como todo mundo sabe, jabuti não sobe em árvore. Logo, se há uma coisa tal como o orçamento secreto, é porque tem gente muito esperta por trás levando alguma vantagem nisso. Daí a grita geral contra a decisão do Supremo, que decretou o fim da festa no auge da animação, quando os parlamentares já se preparavam para auferir os louros das emendas empenhadas justamente no momento mais crítico dos seus mandatos: o ano da reeleição.
Reagindo a seu modo, o Congresso resolveu bater de volta. Uma vez que lhe parecesse difícil simplesmente jogar o jogo segundo as regras, os parlamentares passaram a distribuir pancadas abaixo da linha da cintura. E é justamente nesse contexto que ressurge a famosa “PEC da Bengala”.
Não que se trate de tema novo. Muito pelo contrário. Aqui mesmo já se falou da PEC da Bengala pelo menos um par de vezes (aqui e aqui), em ambas para criticar a proposta que estendia a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo de 70 para 75 anos de idade. Quando a proposta era apresentada, a ladainha era sempre a mesma: “não podemos permitir novamente que ministros como o Fulano de Tal, no “auge” da sua capacidade intelectual, se aposentem “tão cedo” do Supremo”. No fundo, o que se pretendia era tão-somente tolher o direito do presidente de turno de nomear mais ministros para o STF. Como Dilma Rousseff era Dilma Rousseff, de tanto baterem, essa água acabou furando a pedra e entrando para dentro do texto constitucional em 2015.
Agora, no entanto, parte das hordes bolsonaristas pretende revogar a PEC da Bengala. A idéia abertamente defendida é a de “aposentar” precocemente Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, permitindo a Jair Bolsonaro a nomeação de mais dois juízes à cadeira vitalícia na Corte. Uma vez que uma das “vítimas” dessa PEC é justamente a ministra responsável por explodir o pardieiro do orçamento secreto (Rosa Weber), o Centrão resolveu comprar a idéia (sem trocadilho, por favor).
Obviamente, depois de lançar a PEC ao ventilador, a suposta turma do “deixa disso” entrou em campo para dizer que não era bem assim. Arthur Lira garantiu que não pautaria a PEC em plenário, enquanto Rodrigo Pacheco veio a público dizer que essa não era uma “pauta do momento”. Quem não os conhece, contudo, que os compre. Porque Arthur Lira poderia ter impedido a votação da PEC na Comissão de Constituição e Justiça, mas preferiu deixar de fazer a chamada do Plenário que obrigaria Bia Kicis a encerrar a sessão da CCJ. Já Rodrigo Pacheco, enquanto desdenhava da PEC, arquitetava uma resolução do Congresso que visava a conferir fumos de legalidade ao orçamento secreto, mantendo, no entanto, o segredismo quanto às verbas já liberadas.
Independentemente do que venha de fato a acontecer com o orçamento secreto, a pergunta é: uma eventual revogação da PEC da Bengala teria o efeito de conduzir à aposentadoria de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal?
A resposta a essa questão é claramente não.
Para além do fato de os ministros já empossados estarem protegidos pela cláusula do direito adquirido, nenhuma proposta de emenda à Constituição poderia forçar uma aposentadoria súbita de ministros da Corte. Se assim fosse, estaria vulnerado o princípio da separação dos poderes, pois se estaria permitindo ao Legislativo e ao Executivo alterarem, a seu bel prazer, a composição do STF. Bastaria, em um exemplo radical, baixar a idade-limite para 50 anos, de modo que o Presidente pudesse nomear não dois, mas todos os ministros do Supremo de uma só vez. O despautério dessa conclusão evidencia de forma clara o quão esdrúxula é a tentativa de levar-se a cabo essa proposta.
Se não serve para aposentar ministros do Supremo, a aprovação dessa proposta serve para quê?
Para dar um recado. E um recado claramente político. O que se pretende com a PEC é simplesmente demarcar o cercadinho das estripulias orçamentárias do Congresso, mantendo o Supremo e seus ministros, tanto o quanto possível, longe da confusão. O que está em jogo, em resumo, é simplesmente um jogo de acomodação. Trata-se de um jogo bruto, é verdade, mas o que se pretende com isso não é estabelecer um confronto institucional, mas tão-somente reduzir danos e garantir que os desvãos do orçamento sigam desimpedidos para serem manejados da forma que melhor aprouver às raposas políticas. Em suma, como ocorre com quase todas as crises deflagradas no Planalto Central, o que há é muita espuma e pouca cerveja.
Nada de novo sob o Sol…