Se há uma coisa que a História ensina é que o Brasil sempre anda em círculos. A roda gira, gira, gira, e volta e meia a gente acaba retornando ao mesmo ponto, discutindo as mesmas coisas. Tal é a conclusão de quem observou nestas últimas duas semanas o imbróglio sobre o novo “Auxílio-Brasil”.
Há pouco mais de um ano, escreveu-se neste espaço sobre o então cogitado “Renda Brasil”. Assim como naquela época, o problema era o mesmo: o famoso “teto de gastos”. Instituído por emenda à Constituição durante o governo Temer, o teto serviu como uma espécie de moratória frente ao mercado: devo, não nego, mas prometo que doravante vou tentar gastar menos, pra poder pagar mais à frente.
Seu mecanismo de ação é razoavelmente simples de entender. Congelaram-se as despesas do governo em 2016. Dali pra frente, a despesa do ano seguinte só poderia ser aquela que foi gasta no ano anterior, acrescida da inflação do período. Em um exemplo simples, se o governo houvesse gastado R$ 100 bi em 2016 e a inflação no ano tivesse sido de 10%, em 2017 somente poderiam ser gastos R$ 110 bi (R$ 100 bilhões + 10% da inflação).
Uma vez que a correção das despesas estava limitada à inflação do ano anterior, o resultado é que o valor real das despesas tenderia a cair com o tempo. Mais: dada a limitação do teto, eventuais acréscimos de receita decorrentes de aumento de impostos ou de arrecadação não poderiam ser empregadas em novas despesas. Dinheiro novo, portanto, somente poderia ser empregado numa coisa e numa coisa apenas: pagamento de dívida.
Justo ou não, o fato é que o teto serviu ao seu propósito. As taxas de juros cobradas na praça, que rodavam a dois dígitos durante o governo Dilma, caíram a um dígito no governo Temer, até atingir a mínima histórica de 2% no auge da pandemia, durante o governo Bolsonaro. Como o Brasil não é a Suíça e a inflação é aquela tia chata que insiste em aparecer nas festas mesmo sem ser convidada, desde março as taxas voltaram a subir. Hoje, estão em 6,25% a.a.
Com a inflação em alta e a popularidade em baixa, Bolsonaro fez o que qualquer governante pretendente à reeleição faria: resolveu abrir os cofres. Uma vez que o auge de sua popularidade coincide justamente com o pico da distribuição do auxílio-emergencial de R$ 600,00, a galera do Centrão – que hoje manda e desmanda no governo – resolveu cochichar no ouvido do Presidente que sua recandidatura só seria viável se ele criasse um novo programa para substituir o Bolsa-Família, marca indiscutivelmente associada ao seu antagonista: Luís Inácio Lula da Silva. E, para que o truque da troca de nome pudesse funcionar, o auxílio teria que ser turbinado. Ao invés dos R$ 190,00 médios pagos hoje em dia, o mínimo aceitável seria de R$ 400,00. É justamente aqui que aparece o problema do teto.
Como o restante das despesas do governo estão carimbadas – gastos com salário, Previdência, Saúde, Educação, etc. – a margem de manobra fiscal é mínima. Dentro dela, não caberia de jeito nenhum os R$ 400,00 pedidos pela ala política do governo. A menos, claro, que houvesse uma “quebra do teto”. Pouco importa, a essa altura do campeonato, o modo como a coisa será feita. O resultado final é um só: em 2022, vai se gastar mais do que a regra constitucional autorizaria. Daí a decisão daquilo que restara da equipe econômica de pedir o boné e ir pra casa, contrariada com a violação do que consideravam uma questão de honra para a própria credibilidade.
No mercado, aconteceu o óbvio: dólar e juros explodiram, enquanto a Bolsa despencou 10% em cinco pregões, até se recuperar parcialmente na sexta. Para quem é político, uma semana de salseiro nos mercados pode parecer um preço razoável a pagar pela quebra do teto. O buraco, contudo, é bem mais embaixo nesse caso.
Pra começo de conversa, se criar auxílio fosse solução para político em dificuldades, presidente nenhum no mundo perderia uma reeleição. Bastaria distribuir dinheiro pra camada mais pobre da população nas vésperas do pleito e a disputa estaria no papo. Se isso é verdade para qualquer caso, imagine para um potencial substituto de um programa que tem quase 20 e que já está completamente associado ao seu adversário político. Seria no mínimo ingenuidade pensar que o sujeito que recebeu até outro dia o Bolsa-Família vai deixar de associar o benefício a Lula, simplesmente porque o presidente de turno resolveu mudar o nome do programa a menos de um ano da eleição.
Pior que isso, somente a constatação de que, em qualquer caso, o número de beneficiários do Auxílio-Brasil (17 milhões de famílias) será menor do que os que hoje recebem o auxílio-emergencial (35 milhões de famílias). Se hoje a popularidade do Presidente já não é exatamente aquela Brastemp, imagine depois de quase 20 milhões de famílias deixarem de receber qualquer benefício do governo.
Para além dos problemas essencialmente políticos da medida, as consequências econômicas da quebra do teto de gastos tampouco vão se resumir a uma semana de queda na Faria Lima. Com o dólar mais alto, sobem o trigo (pão), o petróleo (gasolina e diesel) e os insumos importados (remédios e vacinas, por exemplo). Logo, a inflação também sobe. E, para combater a inflação, o Banco Central só possui um único remédio: aumentar as taxas de juros. Nas projeções para o ano que vem, o mercado já precifica uma Selic a dois dígitos, algo inimaginável no começo do ano. Com esse cenário se materializando, o resultado é evidente: menos crescimento, menos investimentos e menos empregos em 2022.
A solução adotada pela ala política do governo, portanto, pode conseguir a proeza de unir o pior de dois mundos: nem vai alavancar a popularidade do Presidente entre os que receberem o Auxílio-Brasil (tanto porque será menos gente do que o auxílio-emergencial, como também porque quem vota no PT por conta do Bolsa-Família vai deixar de votar em Lula porque outro presidente mudou o nome do programa); como também vai fazer com o que governo perca a credibilidade junto à galera do dinheiro grosso, que gosta de muita coisa, menos de mudança de regras. Como “bônus”, a jogada reeleitoral pode ainda contratar um “pibinho” pro ano que vem, com aumento dos juros, da inflação e do desemprego, tudo junto e misturado.
Pensando no Auxílio-Brasil como tábua de salvação no ano que vem, Bolsonaro pode, sem querer, estar cavando o buraco de suas pretensões eleitorais em 2022. Quem viver, verá.