Desde que a Constituição Federal foi promulgada, em 1988, o brasileiro em geral sonha com o dia em que o Congresso regulamentará o inciso VII do seu art. 153. O dispositivo em questão autoriza a União – ou seja, o Governo Federal – a instituir um imposto sobre “grandes fortunas, nos termos de lei complementar”. Como leis complementares dependem, para sua aprovação, de maioria absoluta da Câmara e do Senado, e a disposição dos parlamentares para fazer uma tal coisa é apenas relativa, estamos aí há 33 anos à espera desse verdadeiro cavalo de São Jorge.
Não que o imposto sobre grandes fortunas fosse resolver lá grandes coisas, que fique claro. De implementação duvidosa e resultado financeiro incerto, é no mínimo discutível que um imposto dessa natureza representasse a salvação da nossa lavoura fiscal. O mais provável, se algo do gênero viesse um dia a ocorrer, seria uma de duas opções: ou os ultrarricos encontrariam alguma brecha que lhes permitisse escapar da mordida do Leão; ou então simplesmente remeteriam suas fortunas para algum paraíso fiscal. Assim como a Natureza, a Irmandade do Grande Capital não reclama; ela apenas se vinga.
Todavia, se o imposto sobre grandes fortunas nunca prosperou por estas terras onde canta o sabiá, seu exato oposto sempre fez grande sucesso por essas paragens. Em um país que já contou a inflação anual na casa dos quatro dígitos, desde sempre o governo cobra o famigerado imposto sobre grandes pobrezas, ou, para ser mais específico, o chamado “imposto inflacionário”.
Mas o que vem a ser esse tal de “imposto inflacionário”?
Os mecanismos de inflação são mais ou menos conhecidos de toda a gente (para mais informações, clique aqui). O valor real da moeda cai e os preços sobem. Ao invés de se ter uma movimentação pontual nas relações de troca causada por um aumento da procura ou uma diminuição da oferta, o que ocorre é uma subida generalizada dos preços da economia. É isso que permite, por exemplo, ver fenômenos à primeira vista ridículos, como mercadorias encalhadas nas gôndolas tendo seu preço reajustado para cima, mesmo sem que ninguém as compre.
Quando a inflação se espraia por toda a economia, os resultados em geral são desastrosos. Para o trabalhador assalariado, a briga é quase sempre inglória, porque os salários nunca conseguem acompanhar o ritmo de subida dos preços. E, mesmo para o empresariado, o resultado não costuma ser dos mais auspiciosos. É bem verdade que boa parte da inflação vai repassada ao preço final em forma de reajuste. No entanto, nem sempre o empresário consegue repassar todo o aumento inflacionário, o que comprime sua margem de lucro. E, mesmo quando consegue repassar a maior parte dele, invariavelmente as vendas tendem a diminuir, pois o poder de compra do consumidor cai à medida que a inflação sobe, resultando em menos vendas.
Entretanto, se para a maioria dos agentes econômicos a inflação representa quase a “indesejada das gentes”, há gente que não se importe muito com o aumento dela. Aliás, há até quem costume enxergá-la como uma doce aliada. Além dos bancos (que ganham os tubos sempre, em qualquer cenário), também os governos costumam ganhar dinheiro quando a inflação sobe. É aí que entra o famoso “imposto inflacionário”.
Além da constatação óbvia de que a maioria dos impostos são corrigidos anualmente pela inflação (vide, p. ex., os casos do IPVA e do IPTU), há várias outras formas através das quais os governos, em todos os níveis, se beneficiam do aumento generalizado dos preços na economia para incrementar as suas receitas. Se o preço de um carro sobe, por exemplo, o IPI e o ICMS incidentes sobre o automóvel também rendem mais, pois são calculados sobre o valor total do carro.
Ademais, como os salários dos servidores nunca são reajustados na mesma proporção da inflação passada, isso significa que o gasto dos governos com o funcionalismo cai anualmente em termos reais. Não por acaso, o Brasil passou quase duas décadas para se livrar da inflação pornográfica, recordista do mundo ocidental. Para a maior parte dos governos que passaram, a inflação não era um problema, mas, antes, uma solução para seu desarranjo fiscal.
Explicado isso, bem se pode entender a razão pela qual, a despeito de o PIB brasileiro ter caído 0,1% no último trimestre, a arrecadação do governo federal tenha subido mais de 25% em relação ao mesmo período apurado. Mágica? Contabilidade criativa? Não. É apenas o imposto inflacionário dando as caras novamente.
Obviamente, essa é uma “solução” de tiro curto. Ninguém aguenta imposto inflacionário por longo tempo. Para além das evidentes repercussões políticas negativas que a inflação traz, uma administração que se acostume a tapar os rombos do orçamento recorrendo a esse tipo de expediente acaba derruindo a credibilidade junto aos seus financiadores, que passam a exigir juros cada vez mais altos para financiar a dívida do governo. Essa, a propósito, é a razão pela qual os juros na praça estão rondando a casa dos dois dígitos, enquanto a Selic – taxa oficial do governo – ainda está em 5% ao ano.
Para a parte mais remediada da população, o incômodo da inflação alta não chega a assustar muito. Afinal, essa é a galera que tem acesso a contas com saldos remunerados e produtos bancários sofisticados, que permitem até mesmo incrementar seus investimentos caso a inflação suba. Assim como em outras searas da vida, aqui também se aplica a regra geral do capitalismo financeiro: quem tem muito, salva muito; quem tem pouco, salva pouco.
E quem não tem nada, acaba perdendo algum…