“Supremo é o povo!”
Eis o adesivo que viralizou nos automóveis de uma certa elite brasileira nos últimos tempos. Com cores que remetem à bandeira do Brasil e uma indisfarçável vocação para o autoritarismo, o adesivo tenta produzir uma crítica nem um pouco velada ao Supremo Tribunal Federal, através da invocação clássica de quem pretende derrubar as instituições: a palavra mágica “povo”.
Deixando-se de lado, por ora, a constatação de que essa gente costuma restringir o conceito de “povo” somente àqueles que pensam consigo, fato é que essa história de “Supremo é o povo” não passa de uma baboseira juvenil para distrair a malta ignara de problemas maiores que acontecem por aí. Produz-se, a um só tempo, desinformação e violência política, na medida em que se procura deslegitimar o poder outorgado às instituições da República.
Por essa manipulação reles da vontade popular, o “povo” – ou seja, aqueles que comungam do mesmo pensamento de quem faz a invocação, pouco importando que seja a minoria da população – estaria autorizado a “passar por cima” da autoridade conferida pelo constituinte aos poderes do Estado. Nesse caso especificamente, o alvo da fúria popular seria o STF.
Mas será que “Supremo é o povo”?
À primeira vista, a invocação parece verdadeira. Afinal, o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal afirma literalmente que “todo o poder emana do povo”. Logo, se o titular do poder de uma Nação é o povo, nada o impediria de “assumir as rédeas” e resolver os problemas na marra, caso os poderes não estivessem atuando de acordo com o “desejo da população”.
No entanto, o mesmo dispositivo segue adiante, ao informar que o poder do povo será exercido “por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ou seja: embora o povo seja o titular único e absoluto do poder estatal, ele não está autorizado a fazer o que lhe der na telha, quando e do jeito que bem lhe aprouver. A mesma Constituição que reconhece ao povo seu poder sobre os desígnios da Nação determina que esse poder somente poderá ser exercido através de quem o povo eleger como representante (titulares do Poder Executivo e do Poder Legislativo), ou através de plebiscito ou referendo, que são as únicas duas formas reconhecidas no texto constitucional de participação direta do povo nas decisões de Estado.
Dessa forma, se o povo não estiver satisfeito, por exemplo, com o desempenho de um presidente da República, a única forma que a Constituição reconhece para que a população expresse a sua insatisfação é ir às ruas e pressionar o Congresso para que produza um impeachment do sujeito. Do mesmo modo, se um parlamentar é flagrado roubando dinheiro público e desviando-o para seu próprio bolso, só se pode recorrer à Justiça (para condená-lo) ou à própria casa legislativa da qual ele faça parte (para cassá-lo).
Por óbvio, o mesmo raciocínio se aplica ao Supremo Tribunal Federal. Ministros do Supremo que saem da linha podem sofrer impeachment do Senado Federal ou, em caso de crime, através de um julgamento por seus próprios pares de toga. Fora disso, não há nada mais a se fazer, pois a Constituição não autoriza qualquer maneira de “justiçamento popular”.
Evidentemente, essa ponderação se limita à análise jurídica da questão. É claro que uma revolta popular, como a Revolução Francesa, pode colocar tudo a baixo e instalar um novo tipo de sistema e até mesmo de regime em um determinado país. Ocorre, no entanto, que nesse caso estamos operando numa seara revolucionária, puramente de força, fora dos limites constitucionais. Nada, portanto, que se enquadre na Constituição vigente.
Se de fato revolução é o que pretendem essas figuras que saem por aí com esses adesivos colados em seus carros, beleza. Ponham as “tropas” que tiverem nas ruas e traiam abertamente a Constituição (com todos os riscos inerentes a essa “escolha”). Do contrário, parem de parolagem e desistam de difundir as pirações que chegam quentinhas diretamente do mundo onde a Terra é plana.
Não mudará muita coisa, mas pelo menos não abusarão da patientia nostra.