Impedido por problemas técnicos de produzir a atualização semanal que este pequeno espaço da Internet demanda, hoje vamos a ele.
E as 24h de atraso, nesse caso, vieram bem a calhar. Não por conta da demora, que fique claro. Afinal, o respeito pela fidelidade dos diletos 93 seguidores deste espaço sempre foi uma marca do Dando a cara a tapa.
Na verdade, o transcurso de uma rotação completa da Terra sobre seu eixo permitiu de certa forma que os confetes e a espuma gerados ontem com o discurso de regresso de Luís Inácio Lula da Silva pudessem amainar a visão e permitir um esboço mais fidedigno da realidade. E aí a opção que se impunha a este que vos escreve era: deveríamos retomar, pela décima milionésima vez, a disputa entre Bolsonaro e Lula?
Quem acompanha o Blog está careca de saber qual a opinião do Autor sobre o assunto. Como o 1/3 governista do eleitorado não vai mudar de idéia, muito menos o 1/3 oposicionista (o que não tem nada a ver com dizer que ambos são politicamente equivalentes), restaria discutir pra onde vai o terço “isentão” do eleitorado, que costuma definir os pleitos nacionais desde pelo menos 1946. E essa galera não vai definir o voto senão na véspera da campanha do ano que vem.
Resta, então, falar sobre o quê?
Resta, talvez, falar sobre um dos aspectos mais relevantes de toda a celeuma que se passou no Brasil desde a última segunda-feira, quando o Ministro Edson Fachin resolveu, com uma canetada só, anular as decisões condenatórias de Lula. Resta discutir que tipo de responsabilidade recai sobre o Supremo Tribunal Federal pelo estado de coisas em que o país se encontra.
Deixando-se de lado, por ora, qualquer juízo de valor sobre o conteúdo das decisões do STF, os fatos são esses:
1 – Condenado por Sérgio Moro e tendo sua sentença confirmada pelo TRF-4 ainda no começo de 2018, Lula caiu nos mecanismos da Lei da Ficha Limpa e ficou de fora da corrida presidencial daquele ano. Desde o início, suscitava algum espanto o fato de Lula estar sendo julgado em Curitiba (PR), por um triplex situado no Guarujá (SP), recebido por conta de corrupções havidas na Petrobras (sediada no RJ), cujas negociatas teriam sido acertadas em Brasília (DF). Lula foi denunciado por esse caso em 2016. Foram necessários cinco anos para que o Supremo se desse conta da incompetência territorial de Sérgio Moro para julgar esse processo?
2 – Em 2018, pressionado por um tuíte do então Comandante do Exército, General Villas Boas, o STF negou habeas corpus a Lula, permitindo a prisão de condenados em segunda instância. Já fora da cédula, Lula ficou de fora também da campanha. Pior. Em determinado momento, Lula não podia sequer falar ao público externo, dado que o Ministro Luiz Fux – atropelando uma decisão do colega Ricardo Lewandowski -, proibiu até que jornalistas o entrevistassem na cadeia. A mordaça imposta ao ex-presidente foi revogada no ano seguinte, e a prisão, quase dois anos depois. Que tipo de prejuízo o Supremo causou à campanha de Fernando Haddad ao negar liberdade e voz ao seu principal cabo eleitoral?
3 – Desde junho de 2019, o escândalo da Vaza-Jato demonstrara a parcialidade com que Sérgio Moro conduziu os processos do ex-presidente da República. A suspeição do então todo-poderoso Ministro da Justiça de Jair Bolsonaro ficara patente até para um segundanista de Direito. No entanto, o habeas corpus que discutia essa tema foi engavetado por um “perdido de vista” do Ministro Gilmar Mendes, depois de dois votos contrários a Lula (Edson Fachin e Carmen Lúcia). Gilmar resolveu desengavetar o processo de súbito só nesta terça, um dia depois de Fachin anular as condenações de Lula. O que teria acontecido se o STF tivesse reconhecido desde então a evidente parcialidade do ex-juiz de Curitiba?
Independentemente da análise que se faça sobre cada um desses julgamentos, o fato é que todos eles evidenciam um Supremo que se guia muito mais pelo teor e pelas implicações políticas de suas decisões do que propriamente pela correta aplicação das normas legais que se ajustam ao caso. A mera constatação de que o vai-e-vem do STF poderia alterar radicalmente o cenário político do país caso tivesse decidido de outra forma demonstra que há algo de errado com a jurisdição constitucional nestas paragens.
Nunca se deve esquecer que, ao contrário dos políticos, que recebem sua legitimidade diretamente do povo, através do voto, os juízes não são eleitos. Enquanto a justificativa do poder dos representantes da Nação dá-se de forma apriorística, por meio do sufrágio, a legitimidade do poder dos juízes justifica-se a posteriori, com a fundamentação técnica de suas decisões. Por isso mesmo, quando se verifica que as mesmas normas podem ser levadas de um extremo a outro conforme a conveniência do intérprete, ou, mais especificamente, que tribunais podem mudar de entendimento sobre determinado assunto com a mesma naturalidade com que uma criança troca de fraldas, a confiança na Justiça como instância de poder vai pelo ralo.
Muito se diz – inclusive neste espaço – que os militares não devem se imiscuir em assuntos civis (assim como civis não devem se imiscuir em assuntos militares). E é verdade. A mistura do pessoal da caserna com a política nunca deu certo mundo afora e foi experimentada por pelo menos três vezes por aqui, com resultados conhecidos. Quem sabe, um dia, o país descubra que a mesma regra também deve ser observada pelos seus tribunais.