É verdade que grande parte do mote deste pequeno espaço da Internet é dedicado ao Direito. Mas, seja por convicção pessoal do Autor, seja porque geralmente questões jurídicas são profundamente enfadonhas, os temas legais costumam sempre ser deixados de lado em favor de uma maior pluralidade do Blog.
Para além disso, ao afastar-se do Direito, o Dando a cara a tapa mantém uma distância segura de um ambiente costumeiramente putrefato pela fogueira inextinguível de vaidades que é a doutrina jurídica. O Blog, enfim, fica mais arejado e menos monotemático, objetivo perseguido desde sempre pelo Autor.
Há ocasiões, entretanto, em que, por mais que se queira, não é possível evitar o mergulho nas letras jurídicas. E, já há algum tempo, um tema ronda o cenário nacional sem que tenha sido objeto de uma análise mais aprofundada aqui no Blog. Trata-se, claro, do agora famoso “artigo 142 da Constituição Federal”. Presente em 11 de cada 10 manifestações golpistas promovidas por “cidadãos de bem” vestidos de verde-e-amarelo, o art. 142 da Constituição trata das Forças Armadas e de seu possível emprego quando necessário para manutenção da ordem pública.
Mas o que diz, afinal, o tal artigo 142 da CF/88?
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
A letra da Constituição é bastante clara e didática, mas convém dissecá-la para poder explicar ao distinto leitor do que realmente se trata nesse artigo específico do texto constitucional.
De início, o constituinte descreve as três forças (Marinha, Exército e Aeronáutica), curiosamente citando-as pela ordem de precedência de criação. Declara, por óbvio, que elas são instituições permanentes e regulares – logo, não podem ser dissolvidas por nenhum governo – e organizam-se com base nos preceitos da hierarquia e da disciplina – estrutura que as aparta do mundo civil, no qual hierarquia e disciplina têm contexto absolutamente diverso.
Logo em seguida, o legislador constituinte declara que as Forças Armadas encontram-se “sob a autoridade suprema do Presidente da República”. O que deveria ser um truísmo, na verdade reconduz-se ao trauma vivenciado pelo período antecedente, no qual os militares depuseram um governo civil e estabeleceram uma ditadura em rodízio por longos 21 anos. Quer-se, com isso, dizer de forma clara e incontornável que os militares encontram-se sob comando civil. Logo, qualquer tentativa de desestabilizar o governo eleito não só deve ser rechaçada como, inclusive, deve ser encarada como quebra de hierarquia (pois o presidente é o comandante-em-chefe das Forças Armadas).
Dessa conclusão é possível inferir outra, tão ou mais importante que a primeira, mas pouco observada pelos doutrinadores em geral. Embora não faça parte do meio militar, eleito que foi pelo sufrágio universal, sem passar por toda a cadeia de comando, o Presidente da República é o ponto de intercessão entre o mundo civil e os militares. E esse ponto de intercessão tem lugar justamente no ápice, no topo da pirâmide. Disso resulta a conclusão de que é o povo, responsável pela eleição do Presidente, que escolhe diretamente o chefe supremo das Forças Armadas. Logo, a submissão do poder militar ao poder civil é algo não somente textual da Constituição, mas que decorre da própria estruturação do regime democrático.
E daí?
Daí que é absolutamente bizarro, seja pela interpretação do texto constitucional, seja pela sua própria estrutura jurídica, querer interpretar que a parte final do artigo 142 – as Forças Armadas destinam-se “à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” – como uma espécie de “autorização constitucional” para uma ação das Forças Armadas contra qualquer dos poderes constituídos.
O que a Constituição autoriza, e ainda assim de modo excepcional e absolutamente episódico (não por acaso condicionado à aprovação de lei complementar, para a qual se exige maioria absoluta – art. 142, inc. I, CF/88), é o apoio das Forças nas chamadas “ações de garantia da lei e da ordem”, as famosas GLOs, cujo exemplo mais recente deu-se no final do Governo Temer, com a intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro. Nada a ver, portanto, com as faixas distribuídas nessas manifestações antidemocráticas.
A miopia dessa “leitura” do texto constitucional é de tal maneira grave que o sujeito nem sequer atenta para outras passagens da Constituição que não deixam margem a qualquer dúvida sobre a ojeriza que o legislador constituinte cultiva contra “intervenções” do meio militar no poder civil. O inciso XLIV do art. 5, por exemplo, dispõe expressamente que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Mais claro que isso, só se o constituinte desenhasse.
Defender “intervenção militar constitucional”, portanto, é terraplanismo jurídico. E todo terraplanista jurídico deve receber a alcunha apropriada para quem defende esse tipo de discurso: golpista.
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