Era apenas questão de tempo.
Passados mais de 30 anos desde a redemocratização, experimentando o período mais longevo de normalidade democrática de sua história republicana, é cada vez maior a impressão de que os militares voltaram a dar as cartas em Brasília. Claro que não tivemos (pelo menos não ainda) um golpe militar e não estamos (pelo menos não ainda) numa ditadura. Mas os sinais de que o poder civil encontra-se de forma inquietante sob tutela militar são cada vez mais evidentes.
Não que isso fosse inesperado. Muito pelo contrário. Tendo eleito um ex-capitão do Exército declaradamente defensor do “Regime de 64”, e que, na seqüência, apinhou seu governo de militares da reserva e da ativa, era até natural que o Brasil experimentasse um regresso à caserna. Dentro desse panorama, parecia óbvio que, em algum momento, o pessoal do verde-oliva tomaria de novo gosto pela coisa e espraiaria sua influência por todo o governo.
Veja-se, por exemplo, o que aconteceu na Casa Civil. Depois de defenestrar Onyx Lorenzoni e deslocá-lo para o Ministério da Cidadania, a principal pasta política de qualquer governo passou a ser ocupada por um general da ativa, Braga Netto. Mesmo que tenha posteriormente passado para a reserva, o fato é que o general Braga Netto jamais ocupou qualquer outro cargo na sua vida senão na estrutura militar.
No mundinho de intrigas de Brasília, houve quem celebrasse a ascensão dos militares ao coração do Planalto. Houve mesmo quem achasse que “agora vai!”, pois a “ala militar” teria enfim sobrepujado a “ala ideológica” do Governo. E houve até quem acreditasse na história de que a ascensão de Braga Netto seria uma espécie de “intervenção” na presidência caótica de Jair Bolsonaro. Nada disso, porém, encontra eco na realidade.
Desde logo, deve-se esclarecer que as referências aos “militares” ou à tal “ala militar” do governo pecam pela imprecisão. A imprensa costuma-se referir aos estrelados do Planalto como se fizessem parte de algum bloco monolítico, que anda sempre para o mesmo lado, como a ala das baianas da Mangueira. Não, não, absolutamente. O que aconteceu com o general Santos Cruz é a prova maior disso, defenestrado que foi após um embate com a ala ideológica do governo. Para além disso, há casos de generais que são mais ideológicos do que a própria ala ideológica, tais são as alucinações que são capazes de proferir.
Ainda que algo do gênero tivesse realmente ocorrido, seria o caso de pensar se haveria alguma razão para comemorar. Quem foi eleito, afinal, foi Bolsonaro. E, para o bem e para o mal, é ele quem tem mandato para governar o país. Acreditar, de alguma forma, que seria bom ver os militares se apossando da coisa toda e comandando um governo títere nos bastidores seria, na melhor das hipóteses, uma doce ilusão.
Nada contra os militares, que fique claro. Ou, mais especificamente, nada contra que os militares desempenhem as funções de militares. Eles obedecem a ritos e procedimentos próprios e têm até uma Justiça para chamar de sua (embora seja sempre bom lembrar que a Justiça Militar está para a Justiça assim como a música militar está para a música). Estruturam-se com base na disciplina e na hierarquia, elevando à décima potência a regra segundo a qual manda quem pode (ou quem tem patente mais alta) e obedece quem tem juízo (quem é soldado raso).
Mas militar desempenhando função de civil é coisa bem diversa. Mais ainda quando essa função civil é de natureza política, um bicho avesso a diálogos estruturados em um esquema no qual uma parte fala e a outra cala a boca. Não. Política é essencialmente diálogo entre iguais, que transita entre concessões e compromissos na busca de um acordo (o que não necessariamente significa empenhar um naco da alma por maços de dinheiro).
É exatamente por isso que, em regra, militares não costumam ter sucesso quando ocupam funções políticas. Ora, quem passa a vida inteira sendo regido por um código de conduta baseado na hierarquia – eu mando, você obedece e ponto final – dificilmente se adaptará a um sistema no qual, se o outro não obedece, a coisa fica por isso mesmo.
Talvez seja a hora de se parar e de se pensar. De certa maneira, todo o período republicano brasileiro se passou sob o espectro das baionetas. Afinal, foram os militares que declararam a República. Foram eles que colocaram Vargas no poder e depois de lá tiraram-no. E foram eles que instauraram uma ditadura que desgraçou o país por longos 21 anos.
Durante todo esse tempo, era como se os civis que governavam o Brasil fossem como crianças, observadas de perto pelos pais. A qualquer momento, eles poderiam intervir caso elas “fizessem besteira”. Quando Geisel começou a abertura e decretou a “volta aos quartéis”, parecia que o Brasil se livrara desse fantasma e poderia, enfim, caminhar com as próprias pernas. Não é necessário que esse (pequeno) avanço da democracia brasileira seja colocado em xeque.
E nunca é demais lembrar os ensinamentos do próprio Geisel:
“Quando a política entre por uma porta nos quartéis, a hierarquia sai pela outra”.
Interessante essa citação do Geisel: hoje temos um capitão de artilharia (especialista em matar, com ele mesmo se autoproclama) atirando por todos os lados, tentando impingir uma arrogante autoridade sobre todos, inclusive aos que durante sua vida foram-lhe superiores…talvez sua postura seja pra esconder que como bom Capitão ainda se dobra aos Generais, só contraria Geisel, no caso…
Interessante sua observação, Marlos. E é verdade. O Geisel, quando era vivo, inclusive se referiu ao Bolsonaro como “mau militar”. É curioso que, apesar disso, hoje ele ainda desfrute de tanta popularidade na tropa. Vai entender…Um abraço.
Great sharee