Parece anúncio de fim de mundo.
Depois de anos de marasmo político, a América Latina resolveu voltar à ribalta em grande estilo. Salvo a Venezuela, ovelha desgarrada do continente, tudo parecia mais ou menos em ordem por aqui. Quando todo mundo pensava que a parte sul das Américas seria uma espécie de oásis em meio a mundo permanentemente em conflito, eis que de repente o paiol explode e a América Católica parece mergulhar definitivamente na convulsão.
O que está acontecendo, afinal, com a América Latina?
A primeira coisa a se fazer para tentar compreender o imbróglio latinoamericano é tirar os bodes da sala. Ou, mais especificamente, colocar as estapafúrdias teorias conspiratórias de lado. Não há qualquer concertação orquestrada pela “esquerda” ou pelo “Foro de São Paulo” com vistas a desestabilizar os governos de “direita” que estariam agora no comando do continente sul-americano. Na verdade, o que está em causa é, a um só tempo, algo bem mais profundo e, ao mesmo tempo, bem mais prosaico do que se supõe.
De início, pode-se perceber que os países ora em crise – Equador, Peru, Bolívia e Chile -, cada um a seu modo, enfrentam dificuldades distintas e, na sua raiz, têm origens políticas diversas para a erupção popular que está em curso.
No Equador, por exemplo, a briga reside nas medidas econômicas de austeridade promovidas por Lenín Moreno, um ex-integrante do Movimento de Izquierda Revolucionária. Eleito com o apoio do indiscutivelmente esquerdista Rafael Correa, Moreno deu uma guinada de 180º e agora promove medidas de cunho liberal para enfrentar o enorme endividamento legado pelo antecessor.
No Peru, a briga é outra. Uma disputa pelo controle do Tribunal Constitucional peruano (o equivalente ao STF daqui) detonou uma disputa entre o presidente Martínz Vizcarra e a oposição fujimorista, que tem na filha do ex-presidente, Keiko, a sua “Lula” (está presa por lavagem de dinheiro). Entre a dissolução do Congresso, o afastamento do presidente por esse mesmo Congresso e a renúncia de sua vice, Mercedes Araóz, o fato é que Vizcarra continua dando as cartas no país, embora ninguém tenha idéia do que acontecerá nas eleições gerais em janeiro do ano que vem.
A Bolívia, a prima pobre do chavismo que, digamos, “deu certo”, apresenta o mesmo problema de todos os regimes cesaristas: fadiga de material. Depois de esterilizar a democracia permitindo reeleições indefinidas para presidente, Evo Morales enfrentava finalmente um adversário capaz de fazer-lhe suar para manter a cadeira. Só que, depois de anunciar que a disputa iria ao segundo turno, o Tribunal Eleitoral boliviano – sem razão aparente – deu o dito pelo não dito e declarou o atual mandatário como vencedor no 1º turno. Como ninguém engoliu a aparente fraude eleitoral, o resultado era óbvio: povo nas ruas para pedir a destituição de Morales, já há 15 anos no poder.
Por fim, o Chile enfrenta algo parecido com a crise que explodiu no Brasil e que acabou resultando nas famosas jornadas de junho de 2013. Um modelo previdenciário altamente excludente, associado à queda de preços de sua principal commodity (o cobre), levou aquela que era anteriormente denominada por Paulo Guedes como a “Suíça” latinoamericana a experimentar o ronco das ruas insatisfeitas com a desigualdade social, o desemprego e, claro, o indefectível aumento dos transportes públicos (soa familiar?).
Se diferem na origem, as crises por que passam os países latinoamericanos equiparam-se no profundo descrédito no poder estabelecido. Mais ou menos como se passou no Brasil há pouco mais de seis anos, a população sai às ruas por algum motivo específico, mas por trás dele há um recado bem mais amplo: “estamos fartos dos políticos, inclusive os da oposição”.
O que está em jogo, portanto, é uma crise da representação do poder. O sistema democrático alicerça-se fundamentalmente na crença de que, ao se conferir aos cidadãos o direito de elegerem representantes, estes governarão com o propósito de que a vida da população em geral melhore. A idéia de que ditaduras, para além da violência, resultam em mais corrupção e empobrecimento geral é o que sustenta a democracia como a melhor alternativa para o desenvolvimento social. E é esse “contrato” é o que assegura a continuidade democrática. Quando a engrenagem econômica começa a falhar, tudo o mais é colocado em xeque. Daí a crise generalizada na América Latina.
Há o risco de o que está ocorrendo à nossa volta acabe por contaminar o Brasil?
Risco, claro, sempre há. Mas é difícil imaginar algo parecido quando estamos ainda no primeiro ano de um governo recém-eleito, sem que tenha ocorrido uma agudização da crise que vivemos desde a metade do primeiro governo Dilma. Enquanto o Congresso estiver funcionando, ignorando o bestialógico que vem de algumas partes do Executivo, o mais provável é que Bolsonaro continue gozando de algum refresco pelo menos até o carnaval do ano que vem.
Convém, no entanto, colocar as barbas de molho. Quando as primeiras passeatas tomaram as ruas em junho de 2013, Fernando Haddad (Prefeito de SP) e Geraldo Alckmin (governador do Estado) cantavam juntos em Paris. Enquanto isso, Dilma Rousseff achava que a vaia tomada na abertura da Copa das Confederações era coisa de “coxinha” torcedor de futebol.
Deu no que deu.
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