Muita gente adora questionar decisão judicial. Principalmente se a decisão lhe é desfavorável. Assim como os técnicos de futebol, juiz que julga a favor é bestial, enquanto juiz que julga contra é uma besta.
Em 99% das oportunidades, o mimimi é injustificado. Quase sempre a parte derrotada sabe que está errada. Mas, em um processo natural de auto-engano, não consegue imputar a si mesma a responsabilidade pela condenação. Como a lei em si não pode ser responsável pelo infortúnio – porque o comando é abstrato -, resta somente colocar a culpa no próprio julgador, que quase sempre nada mais fez senão seguir o que a lei determina.
Até aí, nada de mais. O mimimi atinge indistintamente todas as classes sociais em qualquer tempo. O problema surge quando as condenações dizem respeito a ocupantes de altos cargos na República, em geral políticos. Do vereador ao senador, do prefeito ao presidente, toda condenação judicial acaba recebendo o epíteto de que a decisão foi “política”. E, como disse certa vez Luís Roberto Barroso, poucos adjetivos são mais desqualificantes para uma decisão judicial do que a acusação de que é política, e não jurídica.
Em um mundo ideal, de fato, o político não deve se misturar com o político. Afinal, juiz não foi feito para votar as leis do povo, tarefa que cabe aos seus representantes eleitos. Ao juiz compete cumprir obsequiosamente as regras votadas por eles. Mesmo nos casos de desaplicação de uma norma por inconstitucionalidade a decisão segue uma lógica estritamente jurídica. Até porque, no final das contas, a Constituição também é uma lei, e lei votada por representantes do povo. Mas será que é sempre assim?
Vejamos um caso prático.
Quando um sujeito atropela outro, ele está cometendo um crime. Pode ser lesão corporal, na melhor das hipóteses, mas também pode ser homicídio, na pior. Reza a norma que, independentemente do caso, o sujeito deve ajudar a vítima, seja diretamente, seja chamando o socorro das autoridades. Se não o fizer, responderá, além do crime de lesão corporal ou homicídio, por crime de omissão de socorro.
Pois bem. Imagine, agora, o caso de um sujeito atropelando uma pessoa. A batida é tão violenta que a vítima morre instantaneamente. Sem nem pestanejar, o sujeito segue em frente e não presta socorro. À primeira vista, portanto, deve responder pelo crime de omissão de socorro, além do crime de homicídio. No entanto, à segunda vista, o buraco é mais embaixo.
Do ponto de vista estritamente jurídico, socorro só pode ser prestado a quem está vivo. Salvo alguma intervenção divina, não há ninguém a quem o réu possa recorrer para socorrer o morto. Assim, como a vítima já está morta, o sujeito não poderia, do ponto de vista legal, responder pelo crime de omissão de socorro. Em termos legais, seria o caso de “crime impossível”, por impropriedade absoluta do objeto.
No entanto, todos os juízes e todos os tribunais do país condenam o sujeito que atropela, mata e não presta socorro, ainda que a vítima morra instantaneamente com a colisão. Por quê?
A questão é a seguinte: se se entendesse que o sujeito que mata instantaneamente uma pessoa por atropelamento não precisaria prestar socorro – pois seria crime impossível – todo réu alegaria que, ao atropelar, não prestou socorro porque acreditava piamente que a vítima estava morta. Em juridiquês, o sujeito estaria na situação do chamado “erro de tipo”: acredita que uma situação de fato existe, embora ela não exista realmente. Ainda que inescusável, o erro de tipo exclui o dolo da conduta. E como não há omissão de socorro culposa, ninguém jamais responderia por omissão de socorro.
Em outras palavras: ainda que seja discutível do ponto de vista jurídico, esse entendimento salva da inutilidade o dispositivo legal a prever o crime de omissão de socorro. Faz-se isso por razões de política criminal. Do contrário, ninguém mais prestaria socorro à vítima e, pra piorar, nem processado por isso poderia ser.
Eis aí uma prova de que nem sempre Política e Direito são imiscíveis. Mais que isso. Uma prova de que, às vezes, é bom que se misturem.
Para o bem de toda a sociedade.