O problema do plebiscito sobre a reforma política

As coisas no Brasil andam tão conturbadas que as manchetes simplesmente atropelam-se umas às outras, numa sucessão estonteante de assuntos diferentes com tanta relevância. Ontem, o negócio era o plebiscito sobre a convocação de uma “Assembléia Constituinte Exclusiva”. Hoje, o plebiscito transmutou-se e agora virou uma consulta direta à população acerca do modelo de reforma política que seria mais adequado para o país. À falta de consenso no parlamento, a solução – proposta pela OAB – seria colocar o povo diretamente na jogada e transferir para ele a resolução do impasse.

Não se trata de um tema exatamente novo aqui neste espaço. Por mais de uma vez, as mazelas do nosso sistema eleitoral e as propostas destinadas a aperfeiçoá-lo foram objeto de posts deste que vos escreve. Das outras vezes, assim como quase sempre na história recente do país, a “Reforma Política” foi fogo de palha nas redações da grande mídia. Surge durante incêndios, produz grandes labaredas, faz muito barulho, mas, no final das contas, resulta em nada. E tudo continua na mesma.

A diferença, agora, é que a força das ruas parece ter quebrado a inércia do sistema político como um todo a ponto de haver certo consenso quanto à necessidade de consultar a população acerca da reforma política. Assim como as viagens ao futuro imaginadas por Einstein, trata-se de uma hipótese factível na teoria, mas extremamente difícil de colocar em prática.

Pra começo de conversa, qualquer plebiscito deve ter como pressuposto a apuração da vontade da maioria do eleitorado acerca de uma pergunta objetiva, do tipo “sim” ou “não”. Exemplo maior desse objetivo foi o plebiscito realizado em 1993, no Brasil, acerca da forma e do sistema de governo. Para um lado e para o outro, havia somente duas opções, ambas relativamente simples de se entender e que se excluíam mutuamente: Monarquia ou República? Parlamentarismo ou Presidencialismo? Não era necessário ser nenhum doutor em direito ou em ciência política para compreender o que cada uma das alternativas representava para o futuro do país.

Com a reforma política, a coisa muda de figura. Embora questões como o financiamento público de campanha possam ser encaixadas com relativa facilidade nessa moldura – é só o eleitor dizer “sim” ou “não” a ele – outras envolvem um quantidade de variantes impossível de ser condensada em duas alternativas do tipo “ou tudo ou nada”. O melhor exemplo disso é a eleição para vereadores e deputados estaduais e federais. Hoje, o sistema é o proporcional. Fora ele, há basicamente duas outras hipóteses: majoritário (quem tem mais votos em todo o Estado leva, sem qualquer cálculo maluco, como o é o quociente eleitoral) e distrital. Este, por sua vez, pode ser distrital puro (quem tem mais votos no distrito leva) ou misto (metade se elege de forma majoritária, a outra metade por listas fechadas elaboradas pelos partidos políticos).

Imagine, portanto, uma pergunta dessas na urna: “Qual o sistema de eleição que você deseja para os parlamentares?” E aí aparecem três opções: “Proporcional, majoritário ou distrital”. Só que, se o sujeito marcar o distrital, em tese deveria se abrir outras duas opções: “Agora marque se você quer distrital puro ou distrital misto”. Já imaginaram o tamanho da confusão que ia dar na cabeça do eleitor?

Admitindo-se que seja possível estabelecer uma forma de votação para essa decisão, como seriam apurados os votos? Na medida em que há mais de duas alternativas em jogo, por definição existe a possibilidade lógica de não haver maioria absoluta de nenhuma delas. Por exemplo: 30% da população pode votar pelo distrital puro, 25% pelo majoritário, 25% pelo distrital misto e 20% pelo proporcional. Qual alternativa será sancionada pelo Congresso? É razoável que a proposta mais votada seja a escolhida, mesmo que não obtenha o apoio da maioria absoluta dos eleitores? E se não for o caso, deverá haver um “segundo turno” para as propostas mais votadas?

Fora isso, a opção consciente do eleitor pressupõe um conhecimento básico acerca das alternativas, conhecimento que pouquíssimas pessoas têm. No mundo jurídico, há muita gente boa que faz confusão entre um e outro sistema de eleição. Mesmo no mundo político – em tese, o mais interessado nisso – são poucos os que conseguem compreender em sua inteireza as nuances de cada um dos modelos existentes. Colocar perguntas de tal dimensão ao escrutínio de uma população não suficientemente esclarecida sobre o tema implicará, na melhor das hipóteses, numa escolha inconsciente, que pode não refletir o que o eleitor efetivamente desejava que acontecesse.

Pra piorar, a própria escolha dos temas que irão ao escrutínio popular pode significar, por via transversa, a legitimação de deformidades ora reinantes no nosso sistema eleitoral. Não vi ninguém defendendo, por exemplo, que se levasse à consulta popular a extinção da reeleição, deformidade institucional enxertada na nossa Constituição durante o desastroso governo Fernando Henrique Cardoso, sobre a qual pesam sérias denúncias de compra de votos para aprová-la. Tampouco vi alguém falando da extravagante figura do “suplente de senador”, que hoje permite a quase 20% do Senado ser composto por figuras que não receberam sequer um voto para estarem ali. Se elas não forem levadas à consulta popular, como afirmar que o povo concorda com elas? Repare que, nos dois casos, a consulta pode ser resumida ao “sim” ou “não”. No entanto, por medo ou por conveniência, ninguém fala nelas.

Vê-se, portanto, que a própria escolha das questões que serão levadas a voto do cidadão pode embutir, de maneira sorrateira, a legitimação enviesada de problemas bem reais do nosso sistema representativo.

O plebiscito é uma alternativa legítima dentro da nossa ordem constitucional? É. Consultar diretamente a população acerca de assuntos que são de seu interesse direto é uma boa iniciativa? Sem dúvida. Mas há de se ter muita cautela quando o sistema político demonstra tanto interesse em colocar o povo na jogada.

Porque a esmola, quando é demais…

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Uma resposta para O problema do plebiscito sobre a reforma política

  1. Mourão disse:

    Para mim é diversionismo puro. A questão é que não fizeram e não querem fazer uma verdadeira reforma, mediante em primeiro lugar, eu acho, o fim das legendas de aluguel, que não quer dizer pequenos partidos, pois alguns deles têm história e outros têm ideologia clara e motivações realmente políticas de atuação( concordando-se ou não com elas)Em segundo, a maioria tem perder influências hoje tidas e, em terceiro, os demagogos de plantão para a democracia, para justificar.
    E, aproveitando a oportunidade, por que alguns ministros de Tribunais, inclusive o Supremo, discutem essa proposta de “constituinte específica”, sob o aspecto da oportunidade, e não faam claramente ser ela inviável sob o prisma jurídico?
    Mais uma vez, valeu., estou fazendo uma reciclagem do meus parcos conhecimentos do Direito, mediante a obtenção, de plano, de saberes de Mestre.
    Arriba( mas no caso da Fúria, abajo).

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