Desde quando se encerrou o julgamento da Ação Penal 470, ainda nos idos do ano passado, advogados murmuram, à boca pequena, a possibilidade de rediscutir o mérito da decisão através da interposição de recursos. Em silêncio, boa parte dos réus credita à mudança na composição da corte – com a nomeação de novos ministros – a possibilidade de transformar um futuro atrás das grades em mero pesadelo de uma noite de verão. Sem querer fazer o papel de chato, é possível que, nos dois casos, advogados e réus estejam depositando as esperanças em vão.
Basicamente, existem dois recursos que os réus podem manejar visando à reforma da decisão condenatória proferida pelo Supremo Tribunal Federal: os embargos de declaração e os embargos infringentes.
No primeiro caso, o cabimento, isto é, a possibilidade efetiva de interposição do recurso é indiscutível. Previstos no art. 619 do Código de Processo Penal, os embargos de declaração podem – e certamente serão – interpostos para posterior apreciação pelo STF.
O problema é que os embargos de declaração não se prestam, em princípio, a rediscutir mérito de decisões proferidas. Eles servem apenas para “aclarar” o sentido do que foi decidido, sempre que presente alguma omissão, contradição ou obscuridade. Ou seja: esse recurso visa apenas esclarecer o que foi decidido, mas não mudar o que foi decidido.
Há, claro, exceções à regra. Principalmente no caso de omissões, é possível que o recurso conduza a uma eventual mudança no resultado do julgamento. Quando isso acontece, tem-se os chamados “efeitos modificativos” dos embargos de declaração. Um exemplo claro:
Imagine um sujeito condenado por homicídio. Em sua defesa, além de alegar que não matoua vítima, disse ele que a pena estaria prescrita. Na decisão, o tribunal decide que o sujeito efetivamente praticou o crime e o condena. Mas nada fala da prescrição. Então, o sujeito interpõe um embargo de declaração para obrigar o tribunal a se manifestar sobre esse ponto, sobre o qual foi omisso. E o tribunal, reconhecendo a omissão, entende que efetivamente houve a prescrição. Ao invés de condenado, o sujeito será absolvido, por conta da extinção da punibilidade.
Mas repare: mesmo nessa situação excepcional, a mudança na decisão depende da existência de um ponto efetivamente omisso. Se o tribunal se manifestou sobre a prescrição e a rejeitou – ainda que o entendimento esteja equivocado – os embargos não podem servir para reformar a decisão anterior, pois não há omissão a justificar a interposição do recurso. É, como todos os tribunais já estão cansados de repetir, o entendimento segundo o qual “não cabem embargos de declaração visando à mera reapreciação do julgado”.
A outra hipótese – os embargos infringentes – é mais complicada.
Os embargos infringentes estão previstos no regimento interno do STF, e seriam cabíveis, em tese, quando, em decisão penal condenatória, houvesse pelo menos quatro votos no sentido da absolvição.
Qual o problema?
Pela Constituição anterior (1967), por mais esdrúxulo que pareça, o STF tinha uma única competência legislativa: regrar o processamento das ações de sua competência. Ou seja: o STF podia legislar para dizer como seriam processadas as ações cujo conhecimento lhe competisse.
Com a Constituição de 1988, essa competência foi revogada. Hoje, todo e qualquer regramento relacionado a processamento de causas deve ser feito por meio de lei aprovada pelo Congresso Nacional. Inclusive as que são de competência do Supremo Tribunal Federal.
O problema é que, depois da Constituição, não havia lei para regular as causas de competência originária do Supremo Tribunal Federal. À falta de lei, o STF, matreiramente, decidiu que as normas processuais estabelecidas em seu regimento teriam sido recepcionadas pela nova Constituição. Traduzindo: o regimento interno do STF faria as vezes de lei enquanto lei nova não adviesse.
Em 1990, o Congresso enfim aprovou uma lei disciplinando normas procedimentais tanto para o STF como para o STJ (8.038/90). E daí?
Daí que a nova lei, na parte em que trata dos processos penais de competência originária, não fala em momento algum em embargos infringentes. O Código de Processo Penal até prevê o recurso, mas só admite seu cabimento para casos de julgamento não unânime de apelação por tribunais locais (Tribunais de Justiça e TRF’s).
A questão que se coloca, pois, é a seguinte: se o Supremo não pode mais legislar em matéria processual e não há lei alguma prevendo o cabimento de embargos infringentes nas ações penais de sua competência originária, eles podem ainda ser interpostos somente com a previsão em seu regimento interno?
A meu ver, a resposta é francamente negativa.
Por isso, assim como no caso anterior, a expectativa de mudança no resultado do julgamento com base na interposição de recursos pode se relevar um grande tiro n’água.
Haverá, claro, quem venha a enxergar essa possibilidade como parte de alguma conspiração jurídico-direitista-midiática contra os réus da ação. Bobagem. A questão é puramente técnica, e assim deverá ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
Bem ou mal, a interposição de recursos servirá para ao menos um objetivo: lançar luzes sobre a esdrúxula situação de permitir a um órgão judiciário disciplinar, com força de lei, o processamento de causas de sua competência. Por meio de um jeitinho, conseguiu-se fazer com que o regimento do STF, com mais de 30 anos de idade, conseguisse ainda ter sobrevida como norma legislativa. Agora, chegou a hora de dar fim à bizarrice.
Excelente post, muito bem fundamentado. Mas por que os réus, mesmo os que não tem foro privilegiado, não teriam direito de ter uma apelação em segunda instância? E quem é que nega que o julgamento não foi mais político do que técnico? O blogueiro assistiu ao discurso final do ilustre Min. Marco Aurélio Mello, às vésperas do segundo turno?
Tudo bem que até em Portugal o embargo infringente, ou algo semelhante, não exista mais, e o artigo 333, do regimento interno do STF, nunca tenha sido evocado desde 1890, segundo a Folha de São Paulo (o que não é verdade!). Ora, NUNCA houve nenhuma ação parecida com a 470, com 38 réus, a mídia fazendo uma cobertura maior do que Copa do Mundo, Ministro do STF (recém aposentado) prefaciando livro com teor contrário aos réus e outro Ministro (da ativa) comparecendo a noite de autógrafos de livro, igualmente contrário aos réus – antes da publicação do Acórdão – e ainda por cima houve o desmembramento do processo para uns e para outros não, falo do “mensalão mineiro”, cuja denúncia foi apresentada cinco (!!!!) anos antes ao STF pela Procuradoria-Geral da República!
Se houve unanimidade e instalou-se a dúvida, logo, se possível fosse, o ideal seria afastar o teor político, ou seja, excluir os ministros que declararam seus votos e os comentaram em rede de televisão e discursaram abertamente contra um partido em particular e aqueles vinculados, de alguma forma aos réus ou aos inimigos dos réus. Somente assim, teríamos um julgamento puramente técnico. Logo, NÃO haverá questão puramente técnica em nada julgado pelo STF, pois o STF é tão político quanto técnico.
Se o regimento interno foi, matreiramente, válido até hoje, como poderá valer para ajudar os réus “sarnentos” da Ação 470? Pergunto: há duplo grau de jurisdição no STF? Mesmo quando o julgamento é no tribunal de competência originária? Isso é algum tipo de armadilha? Ou o Min. Celso de Mello não é “tecnicamente” bom?
Meu caro Jack Bauer, a questão do desmembramento do processo foi discutida no começo da ação. E – acredite se quiser – quem propôs o desmembramento foi o Min. Joaquim Barbosa. Isso destrói qualquer teoria conspiratória. De todo modo, concordo com você: foram dois pesos e duas medidas, no Mensalão do PT e no Mensalão Mineiro. Acho que deveriam ter adotado o mesmo procedimento.
Concordo também quanto à crítica ao prefácio do Ayres Britto no livro do Merval. Achei ridículo, de todo o jeito, principalmente por denotar um certo apreço do outrora julgador pelos holofotes da mídia.
Quanto ao duplo grau de jurisdição, só faz sentido falar nele quando há uma instância superior a quem recorrer. Como, no sistema brasileiro, o STF está no topo da hierarquia, cabe a ele errar por último.
Não vejo qualquer problema quanto ao fato de haver julgamentos penais de competência originária no Supremo, embora eu restringisse ainda mais a competência que está prevista na Constituição. O simples fato de o processo iniciar e findar no Supremo não implica desrespeito ao princípio da recorribilidade das decisões porque, assim como o são todos os demais princípios, também este pode ser excepcionado pela própria Constituição Federal.
Abraços.
Meu caro Senador, seu texto é uma verdadeira aula de Direito, porém as observações do nosso Jack são, no meu entender, factualmente, lúcidas e consistentes. Por tudo que já tenho lido, observado e analisado comparativamente, esse julgamento teve um forte viés político. Embora eu não discuta a efeiva culpa de alguns dos réus, considero a punição aos deputados João Paulo Cunha e José Genuíno muito drásticas.
Caríssimos. Sendo completamente leigo na área, fico confortável em expor quando sinto que a Justiça não está sendo feita. É quase como ao escrevermos uma palavra errada, automaticamente meu cérebro fica incomodado e faz um alerta. Hoje, com a informática, a linha sublinhada na cor vermelha faz isso por nós.
Mas vamos aos “sublinhados”:
1º Joaquim Barbosa votou contra o desmembramento do processo. Logo, o primeiro parágrafo da resposta do caro blogueiro perde a razão de ser.
2º A nossa jovem democracia parece não ter chegado a alguns ministros que seguem a antiga hermenêutica. Nosso país , livre e democraticamente, adotou a Convenção Americana de Direitos Humanos (os artigos da referida Convenção foram incorporados ao nosso Ordenamento Jurídico). O Brasil assina as convenções e o STF não as cumpre? Que absurdo é esse? Não imaginava, até então, que houvesse alguma “teoria da conspiração”, mas o jovem blogueiro abriu meus olhos. Houve sim um golpe eleitoral. Quant
3º O caso Barreto Leiva contra Venezuela derruba o último parágrafo da resposta de nosso blogueiro. Vamos a este caso:
“La demanda se relaciona con el proceso penal mediante el cual el señor Oscar
Enrique Barreto Leiva (en adelante “el señor Barreto Leiva” o “la presunta víctima”)
fue condenado a un año y dos meses de prisión por delitos contra el patrimonio
público, como consecuencia de su gestión, en el año 1989, como Director General
Sectorial de Administración y Servicios del Ministerio de la Secretaría de la
Presidencia de la República. Según la Comisión, en el trámite de un proceso penal
ante la Corte Suprema de Justicia contra el entonces Presidente de la República, un
senador y un diputado, el señor Barreto fue citado a declarar como testigo y
posteriormente se decretó auto de detención en su contra. La Comisión alegó que en
dicho proceso no se notificó de manera previa a la presunta víctima los delitos que se
le imputaban por el carácter secreto de la etapa sumarial. Asimismo, la Comisión
alegó que el secreto de la etapa sumarial implicó que el señor Barreto Leiva no fuera
asistido por un defensor de su elección en esa etapa del proceso, interrogara a los
testigos, conociera las pruebas que estaban siendo recabadas, presentara pruebas
en su defensa y controvirtiera el acervo probatorio en su contra. Además, según la
Comisión, el hecho de que la Corte Suprema de Justicia haya sido el tribunal que
conoció y sentenció en única instancia el caso de la presunta víctima constituiría una
violación de su derecho a ser juzgada por un tribunal competente, en razón de que
no contaba con un fuero penal especial, así como una violación de su derecho a
recurrir la sentencia condenatoria. Finalmente, la Comisión estimó que al señor
Barreto Leiva se le impuso una prisión preventiva sobre la base exclusiva de indicios
de culpabilidad, sin la posibilidad de obtener la libertad bajo fianza, que duró más
tiempo que la condena que finalmente recibió. (trecho retirado de http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_206_esp1.pdf)
Por UNANIMIDADE a Corte declarou que o réu em questão tem direito a um novo julgamento.
Meu caro Jack Bauer,
Na sua cruzada contra o resultado do julgamento do Mensalão, convém ser um pouco mais atento na leitura do que escrevo. Em primeiro lugar, como disse claramente no texto, JB votou pelo desmembramento do processo no recebimento da denúncia, como você pode conferir no site do STF. Nesse caso, no entanto, ficou vencido. Assim, quando do julgamento final, achou que não fazia sentido voltar a discutir uma questão já decidida. Por isso, votou contra. Mas isso não invalida a posição inicial dele pelo desmembramento. Em segundo lugar, a CADH não prevalece sobre a Constituição Federal. Assim, se a CF/88 prevê a existência de foro privilegiado, pouco importa o que diz a CADH sobre a matéria. Na verdade, ao estabelecer o princípio do duplo grau de jurisdição como regra, ela não está a impor que em todos os casos ele terá de ser observado. É perfeitamente possível estabelecer foros superiores (prerrogativa de foro) para julgamento criminal de autoridades. Se não fosse assim, teríamos que aceitar que normas originárias da própria Constituição seriam inconstitucionais, o que, além de um absurdo jurídico, é um contra-senso lógico. Por fim, no que toca à decisão da CIDH, ela é bem clara no sentido de que a violação se deu pelo fato de que o réu não foi julgado pelo tribunal competente, e não por conta de qualquer violação ao princípio do duplo grau de jurisdição. Embora você não tenha tocado no assunto no seu comentário, pude perceber que provavelmente você está querendo se referir ao fato de que alguns réus detinham privilégio de foro e outros, não. Quanto a isso, desde há muito se aceita o julgamento de quem não tem prerrogativa de foro pelos tribunais superiores, desde que, obviamente, haja conexão entre os crimes cometidos por quem detém tal prerrogativa e aqueles que não a detêm. Tal foi o caso do mensalão, no qual alguns réus conservaram – e ainda conservam – a prerrogativa de só serem processados criminalmente no STF. E outros, como Marcos Valério e os diretores do Banco Rural, não. Só isso. Um abraço.
Pingback: A balbúrdia sobre os embargos infringentes | Dando a cara a tapa
Prezado blogueiro,
Durma-se com um barulho desses! Reavalie sua Hermenêutica. E desculpe-se com seus leitores, publicando os trechos do voto do Min Celso de Mello. Nem precisa, basta reler os meus comentários!
Eu mereço mesmo, Jack Bauer. Pedir desculpas depois de uma decisão por 6×5 soa no mínimo como uma piada. Sigo acreditando que os embargos infringentes não são cabíveis. Se fosse pra publicar alguma coisa, publicaria o voto do Ministro Marco Aurélio, que para mim foi o melhor nesse caso. Quanto ao voto do Ministro Celso de Mello, ele sempre foi um defensor dos poderes legiferantes do STF. Como os embargos infringentes entravam nesse pacote, não teve como rejeitá-los sem abrir mão de suas premissas – a meu ver equivocadas, repita-se. Paciência. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Um abraço.
Mude, então, o nome do blog. Não dá cara à tapa em nenhuma ocasião! É claro que prefere o Ministro Marco Aurélio. É uma questão de ego.
Isso depende do que você entende por “dar a cara a tapa”, meu caro. Defendi o meu ponto de vista sobre o cabimento dos embargos infringentes e tive a honrosa companhia de cinco – repetindo: CINCO – ministros do STF. Logo, minha opinião pode até ter sido vencida pela maioria, mas está longe de poder ser considerada absurda. Além disso, leia o último parágrafo do texto. Lá está escrito muito claramente o seguinte: “Bem ou mal, a interposição de recursos servirá para ao menos um objetivo: lançar luzes sobre a esdrúxula situação de permitir a um órgão judiciário disciplinar, com força de lei, o processamento de causas de sua competência”. Assim como previ – com mais de SEIS MESES de antecipação, ressalte-se -, muito antes de qualquer órgão de imprensa ou advogado sequer tratar desse assunto, o imbróglio sobre o cabimento dos embargos infringentes trouxe à tona a problemática da equiparação do regimento do STF à lei. Infelizmente, neste caso prevaleceu o entendimento contrário. Você, como bom militante, pode agora estar comemorando o resultado favorável neste aspecto específico. O que provavelmente você não consegue enxergar é que, com esse entendimento, vem também a possibilidade de o Supremo assumir a posição de legislador ativo, substituindo-se ao Congresso Nacional. Não se engane: só quem perdeu com esse julgamento foi o país. É o que você vai perceber com o tempo. Um abraço.