Recordar é viver: “A aplicação da lei no tempo”

E agora com essa moda de mudarem as regras do jogo durante os julgamentos, faz sentido rememorar um post do começo da década passada, no qual se explicava mais ou menos como a coisa realmente funciona.

É o que você vai entender, lendo.

A aplicação da lei no tempo

Publicado originalmente em 3.7.12

Uma das coisa mais mal compreendidas por quem não é da área do Direito é a questão da aplicação da lei no tempo. É dizer: quando existe uma norma e sobrevém outra, que a substitui, qual das duas deve se aplicar ao caso concreto?

Pra piorar, ainda existe o estranho caso da “retroatividade” da lei penal, que, segundo o senso comum, retroagiria apenas para beneficiar o réu.

A primeira coisa a explicar é que nenhuma lei “retroage”. Melhor explicando: nenhuma lei faz o tempo “voltar atrás”. O Direito pode muita coisa mas, até onde sei, não tem poderes para mudar a direção do tempo. “Retroagir” significa fazer incidir algo sobre algum acontecimento ou efeito passado. Mesmo pela Teoria da Relatividade, viagens no tempo só são possíveis para o futuro, nunca para o passado.

Diz-se que a lei penal “retroage” porque, se alguém for condenado por algum crime, e sobrevier uma lei descriminalizando a conduta, o sujeito ganha o meio-fio na hora. Mas aí a lei não “retroage” propriamente. O que há é, digamos, um “efeito implícito” de extinguir a pena de quem foi condenado por um crime que posteriormente deixou de sê-lo. Se de fato a lei penal “retroagisse”, teríamos de admitir que o sujeito fora condenado injustamente e, portanto, teria direito a uma indenização do Estado.

Ainda no campo penal, a aplicação da lei depende de quando o crime foi consumado. Hoje, por exemplo, jogar lixo no chão é somente falta de educação. Se amanhã a lei estipular uma pena restritiva de direitos a quem proceder assim, só quem jogar papel no chão a partir da vigência da lei poderá ser punido com base nela. Do mesmo modo, se hoje o crime de homicídio possui pena de 6 a 20 anos de reclusão e amanhã essa pena sobe para 15 a 35, quem matou alguém antes da aprovação da lei não poderá receber pena maior do que 20 anos.

No caso da lei civil, a questão é um pouco mais complexa. A lei se aplica imediatamente, ressalvados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

No primeiro caso, imagine que você comprou um carro em janeiro de 1990. Como o Código de Defesa do Consumidor só foi aprovado em outubro daquele ano, o CDC não irá se aplicar ao contrato. Trata-se de um ato jurídico perfeito, isto é, um contrato “consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (art. 6º, § 1º, LICC). Se tiver problemas, você terá de recorrer ao Código Civil, o que significa não dispor de todos os benefícios da lei, principalmente a inversão do ônus da prova.

O segundo caso é o mais complicado. Segundo a lei, “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”  (art. 6º, § 2º, LICC). Traduzindo: direito adquirido é aquele cujas condições de usufruto: 1 – já tenham sido preenchidas pelo sujeito; 2 – já tenham começado a ser preenchidas e, embora ainda não o tenham sido totalmente, estão sujeitas somente ao advento de um prazo ou algum evento futuro predeterminado.

O terceiro caso é provavelmente o mais simples. Se uma causa já foi julgada com base em uma lei, mesmo que uma lei posterior venha a dizer exatamente o contrário, prevalecerá o julgamento feito com a lei anterior.

Quanto ao processo civil, fica-se no meio termo. Segundo o art. 1284 do CPC, a lei nova se aplica aos processos em curso, mas se respeitam os atos já praticados pela lei então vigente.   Imagine-se uma decisão (sentença) da qual cabe um recurso (apelação). Agora, imagine uma lei que acabe com o recurso, tornando a decisão irrecorrível. Nesse caso, se a sentença for prolatada antes da vigência da lei, o sujeito poderá recorrer, mesmo com sua extinção posterior. Mas, se ela for proferida depois, o recurso não poderá ser interposto.

Com essas noções, espero que você possa se guiar melhor no seu dia-a-dia pelo emaranhado jurídico.

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