A legitimidade das cortes constitucionais, ou Por que dar poder a gente não eleita?

Passou quase despercebida no noticiário uma declaração recente do Presidente do Supremo Tribunal Federal. Rebatendo aqueles que reclamam da “ilegitimidade” do STF para combater coisas como o orçamento secreto y otras cositas más, Barroso disse o seguinte:

“Lembro que todas as democracias reservam uma parcela de poder para ser exercida por agentes públicos que não são eleitos pelo voto popular, para que permaneçam imunes às paixões políticas de cada momento”.

Como já faz algum tempo que não rola nada de Direito aqui neste espaço, a frase de Barroso serve como mote para explicar um pouquinho as funções, a legitimidade e a própria razão de ser das chamadas “cortes constitucionais”.

Após os horrores da Segunda Guerra Mundial, o mundo emergiu não apenas com cicatrizes físicas, mas com um dilema a resolver: como evitar que ideologias totalitárias voltassem a reinar soberanas em alguma nação. A solução encontrada pelos juristas da época foi transformar o que, antes da II Guerra, apenas numa forma incipiente de balanço de poderes, em um verdadeiro pilar das democracias: as constituições.

Transformada em verdadeiro contrato entre Estado e Sociedade, as constituições do pós-guerra foram desenhadas para serem, fundamentalmente, um instrumento contra-majoritário. Estruturada em torno dos chamados “direitos fundamentais”, a Constituição serviria precipuamente para impedir que maiorias legislativas ocasionais solapassem limites mínimos de proteção das minorias (para entender mais, clique aqui).

Mas como garantir que esse instrumento tão poderoso ficasse de fato à margem das paixões políticas? Como “imunizar” a Constituição dos surtos de raiva do eleitorado que, não raro, conduziam ao poder figuras como Benito Mussolini ou Adolf Hitler?

É aí que entram as cortes constitucionais. Compostas por integrantes não eleitos, as cortes constitucionais foram concebidas como guardiãs da Constituição. A ideia por trás dessas cortes era simples, porém revolucionária: criar um contrapeso ao poder político, capaz de frear eventuais excessos de governos eleitos democraticamente. Ao estabelecer um poder independente, composto por juízes especializados e imparciais, as cortes constitucionais passaram a atuar como um freio moral e jurídico, garantindo que os direitos das minorias não fossem sacrificados em nome de supostas “necessidades” da maioria.

Não por acaso, o principal artífice desse novo modo de pensar a tripartição dos poderes foi justamente a Alemanha. O Bundesverfassungsgericht (“Tribunal Constitucional Federal”) dispõe do poder de anular leis que violem os princípios e os direitos fundamentais assegurados pela Constituição, funcionando, portanto, como contrapeso à força do Parlamento. Daí veio a inspiração para todas as cortes constitucionais européias e, por tabela, também ao Supremo Tribunal Federal brasileiro.

Obviamente, tal estruturação não se deu à margem de críticas de políticos e mesmos de juristas. Afinal, como justificar que juízes não eleitos, desprovidos de mandato popular, tenham a última palavra sobre questões que afetam toda a sociedade? A resposta, como você mesmo deve estar a intuir, está na própria natureza da democracia: ela não se resume à vontade da maioria, mas também à proteção dos direitos individuais e das minorias. Sem um mecanismo que impeça a “tirania da maioria”, a democracia corre o risco de se autodestruir.

Assim, as Cortes Constitucionais surgiram como uma espécie de seguro contra os excessos do poder. Elas são o lembrete de que, em uma sociedade verdadeiramente democrática, nem tudo pode ser decidido nas urnas — especialmente quando o que está em jogo são os direitos fundamentais que garantem a própria existência da democracia. Como a história já demonstrou, até as maiorias mais bem-intencionadas podem ser seduzidas por discursos autoritários ou sucumbir aos caprichos do populismo mais safado.

E, para aqueles que ainda duvidam da importância de um poder não eleito, basta lembrar: se a história nos ensinou algo, é que a maioria nem sempre está certa — e, às vezes, precisa ser salva de si mesma. Como ironizam os cientistas políticos:

“Democracia é quando eu ganho a eleição de você; ditadura é quando você ganha de mim”.

“E a Corte Constitucional?”, perguntaria você.

Ela está lá para garantir que nenhum dos dois vire uma tragédia.

#FicaaDica

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