Tema sempre recorrente no noticiário, arroz de festa nas rodinhas de Direito e quase sempre tendo invocado o seu santo texto em vão por gente que não está nem aí pra ela, a Constituição talvez seja a coisa mais mal compreendida do quotidiano político. Tal como a Teoria da Relatividade, o texto constitucional é algo que todo mundo acha que algum tempo vai ter tempo para entender. Mas, afinal, o que é uma Constituição?
Dizer que a Constituição é a “Lei Maior”, a “Lei Fundamental”, a “Carta Magna” ou qualquer um dos pseudônimos que a praxe jurídica cuidou de lhe arrumar não ajuda em muita coisa. Saber que existe um sistema hierárquico de normas e que a Constituição ocupa, ao menos em tese, o seu ápice pode ser até de alguma valia, mas não explica, na sua essência, o que é um texto constitucional.
A primeira coisa a se explicar sobre a Constituição é algo que pode chocar muita gente, inclusive os povos do Direito que a estudam na Faculdade sem sequer refletir sobre o seu objeto de curiosidade. Fundamentalmente, a Constituição é um instrumento anti-democrático.
“Anti-democrático?!? Como assim?!? Que maluquice é essa?!?”
Palma, palma, não criemos cânico, como diria Chapolin Colorado. “Anti-democrático” não está aqui no sentido vulgar e pejorativo que as más bocas da política costumam cuspir nos microfones da televisão. Trata-se de um sentido mais profundo do que se possa entender como “anti-democrático”. Para melhor compreender a questão, é preciso ter alguma noção de Ciência Política.
Como todo mundo sabe, as nações surgem a partir de um agrupamento determinado de indivíduos que, reunidos sob um mesmo território, resolvem partilhar as mesmas regras e valores para melhor seguirem com suas vidas. Para colocar a coisa preto no branco, em regra as pessoas recorrem a um instrumento jurídico, destinado a reger as relações entre o Estado que se vai criar e os cidadãos que deram origem a ele. A esse regramento jurídico estrutural dá-se o nome de “Constituição”.
Tratando-se de uma sociedade democrática, as decisões sobre os destinos da nação seguirão as regras de eleição. Por meio próprio ou através de representantes eleitos para esse propósito, a maioria – isto é, aquela parcela da sociedade que reuniu a maior quantidade de votos – governa. E “governar”, aqui, deve ser entendido em seu sentido lato, isto é, crias leis, direcionar políticas públicas, definir prioridades orçamentárias, etc. A regra em qualquer sistema democrático, portanto, é que a maioria decide o rumo que o país vai tomar.
Ocorre, no entanto, que nenhuma maioria, por mais expressiva que ela seja, pode solapar determinados direitos ou estruturas do Estado. Por quê? Porque a Constituição determina, expressa ou implicitamente, limites aos quais toda e qualquer maioria deve se ater. Ainda que se consiga, numa hipótese imaginária, reunir um governo que conte com o apoio de 100% da população, determinadas regras não poderão ser alteradas, ainda que o governo disponha da totalidade dos votos no Congresso Nacional. O objetivo, por evidente, é um só: impedir que as maiorias eventuais massacrem as minorias vencidas, garantindo a estas últimas o direito de se reorganizar e, no futuro, consigam se alternar no exercício do poder.
Tendo-se isso em vista, dá pra entender por que a Constituição é fundamentalmente um instrumento anti-democrático. O que ela faz, em resumo, é retirar do espaço do debate legislativo – aquele no qual as maiorias se reúnem para decidir o que fazer – determinadas matérias que, por sua sensibilidade, não podem ou não devem ser alteradas. E aí nesse rol entram os direitos fundamentais, a separação de poderes, as regras relativas à própria alteração do texto constitucional, etc.
Por isso mesmo, toda vez que o Judiciário é tomado por algum surto de ativismo judicial, o que está havendo, no fundo, é uma exacerbação indevida da restrição imposta pelo legislador constituinte. Com o indefectível recurso ao seu “caráter contra-majoritário”, vez por outra o Supremo arvora-se no direito de reescrever o texto constitucional e suprimir parcela relevante de competência dos poderes democraticamente legitimados. E, assim, amplia-se de forma enviesada o cercadinho da Constituição para retirar do Congresso Nacional a prerrogativa de, através das maiorias constituídas, decidir os rumos do país.
Claro, as constituições em geral não são perfeitas e por muitas vezes falham. Se isso acontece em países desenvolvidos, que dirá no nosso Brasil velho de guerra, cujo texto constitucional atual mal completou três décadas de existência. Mesmo assim, a Constituição continua ostentando o papel de melhor instrumento de defesa das minorias contra maiorias tirânicas.
Que assim continue sendo…