Malditas “narrativas”, ou Pelo resgate da vergonha de mentir

Só agora eu percebi que faz mais de ano que não rola nada da nossa tão sofrida língua portuguesa por aqui. Saindo um pouco – mas nem tanto – das eternas discussões políticas deste espaço, vamos resgatar a seção mais querida da minha amiga Icsa e falar um pouco de uma das deturpações mais comuns desses tempos estranhos que estamos vivendo: as tais das “narrativas”.

Para quem leu ou pelo menos ouviu falar do relatório da Polícia Federal sobre o golpe empreendido por Jair Bolsonaro e seus asseclas, o vocábulo “narrativa” já deve ter dado as caras. “Isso não passa de narrativa!”, “Lá vem de novo a PF do Xandão com narrativas contra o nosso presidente!”, e por aí vai. Trata-se, na verdade, de uma forma de desconstrução do vernáculo a serviço do extremismo político.

Segundo nosso pai Aurélio, “narrativa” é um substantivo feminino através do qual se produz uma “ação, processo ou efeito de narrar; narração”, ou, ainda, “uma exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens”. As narrativas, portanto, encerram uma forma de enredo, em que uma personagem (o narrador) relata alguma coisa em determinado período de tempo e espaço.

Entretanto, em algum momento a extrema-direita conseguiu construir laços de parentalidade entre o vocábulo “narrativa” e o estrangeirismo ao qual nos acostumamos a chamar de “fake news”. Tornando-se prima-irmã desta última categoria, a “narrativa” foi d’algum modo transformada em sinônimo de “versão do adversário político” ou, simplesmente, “mentira”. Daí para incorporação no vocabulário das redes insociáveis foi apenas um pulo.

Do ponto de vista estritamente técnico, não faz o menor sentido elaborar uma oração falando de “narrativas de golpe” ou coisa que o valha. Um inquérito policial é baseado em fatos e provas. Não se trata de um conteúdo “narrativo” construído a bel prazer do delegado. Cuida-se de um relato descritivo, a partir do qual se imputa a determinada pessoa a prática de um delito tipificado em lei. Para o Zap profundo, todavia, é vendida a versão de que o caminhão de provas carreado contra os golpistas não passa de uma história da carochinha, contada por “comunistas” ou “inimigos da Pátria”.

Conforme já foi descrito aqui, um dos métodos mais eficazes da extrema-direita para proliferar conteúdos radicais é destruir os códigos de linguagem. Quando um “fato” deixa de ser um fato para ser apenas uma “versão”, qualquer interpretação que se queira dar a ele estará sujeita ao viés ideológico e ao (pré)conceito do interlocutor. Destrói-se, assim, a capacidade de diálogo. Se eu discuto com base em um fato, pode-se chegar à conclusão de que ele é falso ou verdadeiro (o fato, afinal, é materialmente objetivo). Mas se eu debato com base numa versão, aí o fim dessa discussão fica a gosto do freguês (a versão é fundamentalmente uma questão subjetiva).

Uma vez que quase metade da população entrou numa espécie de transe capaz de cegá-la para a realidade, fica muito difícil tentar fazer crer que 2 (derrotado eleitoral) + 2 (espírito golpista) é = a 4 (crime contra a democracia). Para quem vive nesse mundo das sombras, mais fácil é acreditar que 2 (fraude eleitoral) + 2 (Lula ladrão) é = a 5 (estão perseguindo Bolsonaro para perpetuar a esquerda no poder).

Como se contrapor a isso?

A meu ver, um bom começo seria parar de reproduzir, de forma acrítica, os termos popularizados pela direita bolsonarista. Quando alguém vier falar, por exemplo, em “fake news”, cabe ao jornalista escrever a coisa como manda o dicionário: “mentira”. E quando alguém vier querer dar uma de João-sem-braço, falando nas malditas “narrativas”, deve ser imediatamente confrontado: “Onde é que está o erro de fato que o senhor aponta?”

Pode parecer pouco, mas a imposição do uso correto da língua de Camões diminui drasticamente a margem de manobra de gente só interessada em confundir o distinto público. A deformação de vocábulos para fins políticos tem o condão de distorcer a realidade, a ponto de fazer com que rematados canalhas consigam passar por almas impolutas. Uma coisa é alguém dizer, como já o fez o próprio Bolsonaro, que “fake news faz parte da vida”. Outra, bem diferente e com uma carga de reprovação muito maior, é dizer: “minto mesmo, e daí?”

A melhor forma de confrontar o discurso bolsonarista, portanto, é utilizando a verdade. E a melhor forma de empregá-la é recorrendo ao bom uso do vernáculo. Assim, quem sabe um dia as pessoas voltem a ter vergonha de mentir.

Esta entrada foi publicada em Dicas de português e marcada com a tag , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.