Nem sempre o original é melhor – Parte III

Faz tempo que não rola nada de música por aqui. Embora ela esteja sempre presente na Trilha sonora do momento, talvez seja a hora de resgatar essa seção tão querida do Blog. Aproveitando o relativo marasmo da economia e da política nacionais, vamos falar hoje de uma temática já abordada nestas bandas algumas vezes: as versões de músicas já gravadas.

Produzir versões de canções já existentes não é propriamente uma novidade no cenário musical. É raro, contudo, ver regravações que sejam pelo menos equivalentes às originais. E a razão para isso é meio óbvia: se a música vai ser regravada, é porque fez sucesso; e, se fez sucesso numa versão, dificilmente alguém vai se acostumar com uma nova. A memória musical afetiva é muito mais poderosa do que normalmente se admite.

Em algumas poucas hipóteses, porém, quem regrava consegue a façanha de superar o original. No Dando a cara a tapa, por exemplo, já falamos de dois desses casos: For once in my life e Knockin’ on Heaven’s door. Na primeira, temos uma canção de Stevie Wonder regravada pela maravilhosa Gladys Knight. Na segunda, um clássico de Bob Dylan, que adquiriu roupagem inteiramente diferente (e melhor) na versão “rockerizada” do Guns ‘n Roses.

Todavia, no post de hoje, veremos um dos casos mais curiosos do mundo da música: uma segunda versão, muito melhor do que a primeira, gravada pelo mesmo cantor da versão original. Falamos, aqui, da magistral Crazy, de Gnarls Barkley.

Na versão original, a canção segue em um ritmo meio acelerado, mesclando a batida de fundo em rhythm & blues com algo meio funk, meio pop, dando um tom prosaico e quase banal à composição. Ninguém que a escute pela primeira vez vai sequer reparar na letra, que dirá gastar tempo refletindo sobre ela. Isso não impediu, contudo, que o single alcançasse o topo das paradas no Reino Unido, numa dupla façanha para Gnarls Barkley: 1) chegar ao nº. 1 das mais mais logo na estréia; e 2) ser o primeiro single lançado digitalmente a conseguir tal feito.

Alguns anos depois, porém, o próprio Barkley parece ter chegado à conclusão de que a canção merecia uma versão, digamos, mais profunda. Fazendo jus à inquietante letra, Barkley juntou mais dois músicos e produziu quase uma versão acústica de Crazy, numa batida completamente diferente da original. Seguindo um ritmo lento, quase parando, cada verso da canção é seguido propositadamente de um silêncio sepulcral, como se o ouvinte fosse convidado a refletir sobre cada sílaba daquilo que foi pronunciado. E aí a canção parece alcançar toda a potência e inquietação da qual ela sempre foi capaz.

Claro, o close da câmera no rosto de Barkley e a própria performance do cantor ao literalmente interpretá-la ajudam um bocado nessa percepção. Em certos momentos, fica-se até com a impressão de que o cantor está sob efeito de algum entorpecente ou no meio de um surto, servindo a música a um só tempo como terapia e lenitivo.

Mas o que é que a letra de Crazy tem de mais, afinal?

Ao contrário do que fica parecendo à primeira vista, o que a canção procura instigar não é uma reflexão acerca da loucura, mas, sim, sobre aquilo que se possa entender como normalidade. Por isso, quando o sujeito lembra quando começou a “ficar doido”, ele mesmo diz que “havia algo de tão agradável naquele lugar” (There was something so pleasant about that place) que “até suas emoções tinham eco em tanto espaço” (Even your emotions have an echo in so much space). E tudo isso só aconteceu, como ele mesmo relata, não porque “eu não soubesse o suficiente” (But it wasn’t because I didn’t know enough). Ao contrário. “Eu apenas sabia demais” (I just knew too much). É quando vem, de fato, a pergunta chave:

“Isso me faz louco?” (Does that make me crazy?)

Repetida três vezes, a pergunta é respondida com uma chocante sinceridade:

“Possivelmente” (Possibly)

Daí pra frente, segue-se o relato da própria loucura e do diálogo do protagonista da canção com uma amiga/amante imaginária. Recheado de ironia, o sujeito pergunta:

Quem você acha que é?” (Who do you think you are?)

“Você acha realmente que está no controle?” (Do you really thin you’re in control?)

“Eu acho que você está louca, assim como eu” (I think you’re crazy, just like me)

De certo modo, essa versão mais “densa” de Crazy nos faz refletir sobre os nossos próprios conflitos internos. Ninguém é/está mentalmente são em 100% do tempo. É a forma com que lidamos com nossos demônios que determina se ficamos do lado de cá da fronteira ou se, ao contrário, vamos para o other side de que fala Jim Morrinson em Break on Through. Reconhecer a existência dessa luta não representa sinônimo de fraqueza, senão uma ajuda a manter a sanidade nossa de cada dia.

Abaixo, a versão em slow motion e a letra de Crazy, para quem quiser tirar a prova dos 9 sobre o que se escreveu acima:

I remember when
I remember, I remember when I lost my mind
There was something so pleasant about that place
Even your emotions have an echo in so much space

And when you’re out there without care
Yeah, I was out of touch
But it wasn’t because I didn’t know enough
I just knew too much

Does that make me crazy?
Does that make me crazy?
Does that make me crazy?
Possibly

And I hope that you are having the time of your life
But think twice, that’s my only advice
Come on now, who do you, who do you, who do you
Who do you think you are
Ha ha ha, bless your soul
You really think you’re in control

I think you’re crazy
I think you’re crazy
I think you’re crazy
Just like me

My heroes had the heart to lose their lives out on the limb
And all I remember is thinking I want to be like them

Ever since I was little
Ever since I was little it looked like fun
And it’s no coincidence I’ve come
And I can die when I’m done

But maybe I’m crazy
Maybe you’re crazy
Maybe we’re crazy
Wait and see

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