“A vida como ela é”, ou O golpe das Americanas

A piada velha, mas a ocasião exige que se a reconte.

O sujeito chega para três profissionais e pergunta:

“Quanto é 2+2?”

O matemático responde sem pestanejar: “4”. O economista titubeia: “Bem, ceteris paribus, levando em conta o sofisma da composição, você pode teoricamente aceitar que o resultado do somatório de 2+2 seria igual a 4″. Já o contador manda na lata: “Depende. Quanto você quer que dê?”

Tal é a conclusão de quem assistiu ao noticiário hoje, com a deflagração da operação Disclosure, da Polícia Federal. Valendo-se da delação de ex-diretores, a PF revelou detalhes chocantes do esquema de fraudes que levou as seculares Lojas Americanas, um dos gigantes do varejo do país, à beira da falência, naquele que já é o maior escândalo corporativo da história do Brasil.

Segundo as investigações, diretores e executivos da empresa fraudavam descaradamente o balanço. Quando chegava a hora de divulgar ao mercado os resultados trimestrais das Americanas, os empresários trocavam emails e mensagens por WhatsApp sobre a conta de chegada que teriam que produzir para divulgar lucro no lugar de prejuízo. Nas planilhas, elaboravam-se duas colunas. Na primeira, estavam os valores da “vida como ela é” (reais). Na segunda, os valores da vida como ela deveria ser (com os números fraudados).

Não que isso seja novidade. Muito pelo contrário. Desde que o antigo CEO da empresa, Sérgio Rial, veio a público informar que existiam “inconsistências contábeis” – tucanaram a fraude – no balanço das Americanas, sabia-se que havia caroço nesse angu. A fraude começou há vinte anos e, numa conta de padaria (que provavelmente fazem contas muito melhores do que o pessoal das Americanas), diretores e executivos embolsaram ao redor de R$ 700 milhões em luvas e bônus por lucros que jamais foram alcançados. Tudo isso sob as barbas do trio formado por Jorge Paulo Lehman, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, bajulados e paparicados como “lendas” do tal “mercado”.

Em um país que fez do absurdo seu amigo íntimo, pode parecer que a fraude das Americanas é apenas mais um daqueles casos menores, que podem ser resolvidos com um pedido de desculpas geral e alguma multa pecuniária aos envolvidos. Não é. Trata-se do maior crime já cometido contra o mercado de capitais na história do Brasil. Tratando-se de um mundo que gira basicamente em torno de um negócio chamado “confiança”, a pior coisa que poderia acontecer seria deixar tudo por isso mesmo e ver os (ir) responsáveis por esses delitos livres, leves e soltos.

Pode parecer trivial, mas é profundamente curioso observar como uma fraude desse tamanho gera tão pouca repercussão na sociedade. São mais de R$ 20 bilhões. Para efeito de comparação, estima-se que o Mensalão tenha feito girar cerca de R$ 200 milhões em propina (1% do rombo das Americanas). O Petrolão, por sua vez, teria desviado cerca de R$ 2 bi em propinas (10% da fraude de agora). E não há ninguém que esteja pensando em sair às ruas para protestar pela prisão desses crimonosos.

Sempre se poderá argumentar que, no caso do Mensalão e do Petrolão, desviou-se dinheiro público, enquanto, no caso das Americanas, o dinheiro é todo privado. O argumento, contudo, é profundamente torto. Primeiro, porque crime é crime, independentemente de quem seja a vítima do desvio. Segundo porque, embora não se trate imediatamente de prejuízo ao cidadão que não tem ações da empresa, a crise provocada pela débâcle das Americanas afetou todo o mercado de crédito brasileiro. Acredite: se você hoje paga juros altos no seu cartão de crédito, pelo menos parte disso se dá por conta do baque que os bancos sentiram ao fazer empréstimos de olhos fechados a uma empresa que estava podre em suas contas.

Quando aconteceu algo do gênero nos Estados Unidos, a Enron não somente foi à falência, como a empresa responsável por auditar seu balanço (Arthur Andersen) foi liquidada para cobrir os prejuízos dos acionistas minoritários. O dono da companhia, Kenneth Lay, pegou 185 anos de cadeia. Seu gerente de operações financeiras, Jeff Skilling, levou 45 anos de cana nas costas. Na esteira do escândalo, o Congresso norte-americano aprovou a Lei Sarbanes-Oxley, estabelecendo normas rígidas para transparência dos balanços de companhias abertas e determinando a responsabilização criminal dos administradores em casos de fraudes.

Que a Operação Disclosure seja o primeiro passo na transformação do mercado de capitais brasileiro, fazendo com que casos como o da Enron passem a ser o “modelo de tratamento” de bandidos que embolsam milhões, enquanto menoscabam a boa-fé dos acionistas minoritários.

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