Recordar é viver: “A ‘verdade’ sobre João 8:32”

Chegando enfim à tão antecipada Quaresma (embora a maioria só queira curtir a folia carnavalesca), vamos aproveitar o mote da divulgação do cartão de vacinação de Jair Bolsonaro, mostrando – “ora ora que surpresa mas quem poderia imaginar” – que o ex-presidente de fato tomou vacina contra Covid, para relembrar um dos seus principais motes: “E conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará”.

Até para que você, leitor amigo, não caia na esparrela de ficar espalhando essa inverdade por aí.

Tanto em um sentido quanto no outro…

A “verdade” sobre João 8:32

Publicado originalmente em 18.12.19

Chegando ao final de mais um ano aqui no Dando a cara a tapa, vamos recorrer a uma das seções mais incompreendidas deste espaço: a sempre vilipendiada Religião. Mas, para sair do encanto fácil de falar algo batido sobre o Natal ou o nascimento de Jesus, iremos analisar um tema do momento: o agora famoso capítulo 8, versículo 32, do Evangelho segundo João.

Como todo mundo sabe, o Evangelho de João compõe, ao lado de Mateus, Marcos e Lucas, os evangelhos canônicos, o que popularmente todos nós conhecemos como “Novo Testamento”. Em “substituição” ao Antigo Testamento, celebrado por Deus diretamente com o povo judaico, o Novo Testamento restabelece as bases da relação do homem com o divino. Se antes o, digamos, “objetivo” era que os judeus rejeitassem qualquer outro culto e admitissem Jeová como o seu único Deus, agora a “Nova Aliança” proposta por Jesus destina-se a salvar a humanidade amaldiçoada pelo pecado através do arrependimento sincero e do amor a Deus. Não por acaso, o “Deus” do Antigo Testamento é inteiramente “diferente” do do Novo: o anterior era vingativo, inclemente, quase rancoroso; o seu sucessor é amoroso, piedoso, um poço de compaixão.

Dos quatro evangelhos canônicos, João é disparado o mais místico e espiritual de todos eles. Seu começo deixa logo isso claro a qualquer um:

“1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”.

Evidentemente, “verbo” não está aí na sua acepção comum, terrena, de uma palavra que indica uma ação ou alguma mudança de estado. Ao dizer que “no princípio era o Verbo”, o evangelista está a explicar que Deus é eterno; estava no começo de todas as coisas, e todas as coisas só são por sua causa. A segunda parte é autoexplicativa: a palavra de Deus é Deus e ponto, não se podendo estabelecer qualquer espécie de dissociação entre um e outro. Deve-se destacar que esse tipo de abordagem é exclusiva; nenhum dos outros três evangelistas estabelece esse tipo de relação entre Deus (ou Jesus) e a sua palavra.

Dito isto, a leitura de todo o Evangelho de João deve ser feita tendo isso em mente: trata-se do evangelho mais “metafórico” do Novo Testamento. Nada, portanto, pode ser lido “literalmente”, senão depois de um profundo estudo do que verdadeiramente representa cada palavra.

Pois bem. Qual o “problema” com João 8:32?

O capítulo oitavo do Evangelho de João contém um longo debate entre Jesus e os fariseus, ocorrido durante a Festa dos Tabernáculos, que celebra a colheita no calendário judaico. Continuando a discussão que começara no capítulo anterior, os fariseus continuam a tentar pegar Jesus no contrapé. A idéia, como parece óbvio, era desacreditar Jesus como filho de Deus ou mesmo seu profeta, qualificando-o como sacrílego.

Na primeira batida, os fariseus confrontam Jesus com a mulher flagrada em adultério. Como a Lei de Moisés ordenava que se lhe apedrejasse até a morte, perguntam então o que fazer com ela. Jesus tira de letra o desafio: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela” (João 8:7). Uma vez que não houvesse ninguém na multidão que preenchesse esse requisito, a mulher se salva. Jesus então pergunta: “Ninguém a condenou?”. “Ninguém, Senhor”, responde ela. E então Jesus sentencia: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado” (João 8: 10-11).

A segunda parada diz respeito à natureza divina de Jesus: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, nunca andará em trevas, mas terá a luz da vida” (João 8:12). Ao que os fariseus replicam: “Você está testemunhando a respeito de si próprio. O seu testemunho não é válido!” (João 8:13). E mais uma vez Jesus deixa os fariseus com a brocha na mão: “Ainda que eu mesmo testemunhe em meu favor, o meu testemunho é válido, pois sei de onde vim e para onde vou. Mas vocês não sabem de onde vim nem para onde vou” (João 8:14).

Finalmente, chegamos à terceira confrontação entre os fariseus e Jesus. Jesus diz: “Se vocês permanecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos” (João 8:31), para então completar: “E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” (João 8:32).

Aturdidos, os fariseus contestam: “Somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém. Como você pode dizer que seremos livres?” (João 8:33). E Jesus responde com paciência divina: “Digo a vocês a verdade: Todo aquele que vive pecando é escravo do pecado” (João 8:34). E conclui: “Portanto, se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres” (João 8:36).

Dessa forma, pode-se verificar que, quando Jesus faz referência a “verdade” no versículo 32, não está se referindo exatamente ao vocábulo “verdade”, mas, sim, a Ele mesmo. Jesus éverdade. Por isso, quando os pecadores enfim o reconhecerem como tal, a “Verdade” – ou seja, “Jesus” – os libertará. E só assim eles serão “de fato livres”.

O erro, portanto, do Presidente Jair Bolsonaro – e de tantos outros que o seguem – é o de fazer uma leitura rasa e desatenta do texto bíblico, ignorando que o vocábulo “verdade” não se encontra aqui no seu uso regular, mas, sim, como “sinônimo” do próprio Jesus. O dito bíblico, em resumo, nada tem a ver com tentar ensinar o crente a não mentir, mas, sim, em mostrar que Jesus é a única salvação do indivíduo. Afinal, como diz João em outra passagem de seu Evangelho, Ele é “o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:6).

Boa reflexão a todos.

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