Que todo bolsonarista é, por definição, um fanático, já parece suficientemente explicado no post de ontem. Mas por que uma “ideologia” (o termo não se aplica exatamente ao fenômeno, mas o admitamos assim por ora) tão bizarra quanto a bolsonarista conseguiu angariar o apoio e a simpatia de tanta gente? Como justificar que o pior governo disparado da história do Brasil – e, possivelmente, da história do mundo – tenha conseguido arregimentar em torno de si um contigente tão grande de pessoas, a ponto de desequilibrar a balança política brasileira e levá-la até a extrema direita?
Não é, por óbvio, uma pergunta fácil de se responder. Há uma imensa gama de possibilidades para procurar entender como o fenômeno foi criado, como ele se desenvolveu e como, afinal, chegou ao tamanho que alcançou. É certo que nenhuma causa particular explicará sozinha o surgimento do monstro, nem como ele foi cevado a ponto de se transformar neste flagelo do qual padecemos por intermináveis quatro anos. Podemos, contudo, começar afastando o cascalho que nos impede de ver o caminho a seguir.
Em primeiro lugar, descarte-se a possibilidade de o bolsonarismo ter chegado a onde chegou pela entrega de resultados. Essa hipótese não resiste à mais perfunctória análise. A uma, porque o fenômeno em si é anterior à ascenção de Bolsonaro ao governo (as falas racistas, homofóbicas e o desejo de “metralhar a petralhada” são ainda da campanha de 2018, por exemplo). A duas, porque, a menos que a pessoa esteja sob efeito de um poderoso psicotrópico, não há entrega alguma que justifique Bolsonaro ter alcançado quase metade dos votos válidos no segundo turno da última eleição presidencial. Bolsonaro, por exemplo, colocou militares na Saúde e deu no que deu. Depois, colocou militares na Funai, para “cuidar” dos índios. E deu no que está dando.
É importante destacar, também, que o bolsonarismo não é – ou, pelo menos, não foi até 2018 – um fenômeno de massas. Pelo contrário. Era um nicho altamente restrito da sociedade, engolido ou abraçado afoitamente por parte de uma direita não esclarecida assumidamente anti-petista, capaz de fazer de tudo para não reeleger mais um exemplar da espécie. Conforme já foi analisado aqui, as circunstâncias que levaram à eleição de Bolsonaro em 2018 foram únicas e somente a partir da conjunção de todas elas é possível explicar sua vitória sobre Fernando Haddad praticamente sem fazer campanha, convalescendo numa cama de hospital. Tanto isso é verdade que, em 2022, montado no uso mais despudorado da máquina pública de que se tem notícia, sentado na cadeira e com a caneta na mão, Bolsonaro ainda assim não conseguiu se reeleger. E isso enfrentando um oponente que grande parte da população foi ensinada a odiar na última década e meia.
Se o fenômeno do bolsonarismo não se explica pelas regras normais do pragmatismo (governo absolutamente desastroso), nem tampouco a partir dos ensinamentos ordinários da ciência política (não existia antes como fenômeno de massa), como então compreender o que fez da “ideologia bolsonarista” algo tão sedutor, capaz de atrair tanta gente para com ela cerrar fileiras?
Nesse caso, a explicação talvez passe pela análise do bolsonarismo como um fenômeno psicológico.
Como todo mundo sabe, políticos no mundo inteiro ganham e perdem eleições com base na manipulação das emoções, do sentimento do eleitorado. Pois bem. O que há de diferente no bolsonarismo é que ele não manipula exatamente os sentimentos, mas os ressentimentos das pessoas. Toda a gente, em qualquer tempo e lugar, possui ressentimentos. Os rancores acumulados ao longo da vida vão se empilhando, tendo como pano de fundo toda sorte de infortúnio que tenha se abatido contra o sujeito.
Na maior parte dos casos, os azares da vida decorrem das ações do próprio sujeito. No entanto, como ninguém por hábito reconhecer isso, sempre se escolhe um “culpado” para levar a culpa pelo que ocorreu de ruim à vida da figura. E nesse balaio entra todo mundo: governo, família e até os estrangeiros. Isso é o que explica, por exemplo, a xenofobia tão presente em alguns países supostamente “desenvolvidos” mundo afora. No final das contas, a diferença entre uma pessoa crescer ou ficar atrasada na vida é justamente a forma com a qual ela encara e consegue superar esses ressentimentos.
A grande “sacada” por assim dizer do bolsonarismo, portanto, foi catalizar uma miríade absolutamente gigantesca de diferentes modalidades de ressentimentos e mobilizá-los numa única direção. Nesse sentido, o caldo de anti-petismo certamente foi um fator decisivo a contribuir para a disseminação do fenômeno. O desastre do governo Dilma e a corrupção descoberta nos episódios do Mensalão e do Petrolão acabaram funcionando como catalizadores do ódio da população quando a débâcle econômica do meio da década passada se tornou evidente.
E foi assim que o PT se transformou na “Geni” da política brasileira. Na condição de grande bode expiatório dos males do país, tudo que acontecia de ruim com alguém, a culpa era atribuída ao “Petê”. Se a pessoa perdeu o emprego, a culpa foi do PT. Se o sujeito gastou demais e ficou com dívida no banco, a culpa foi do PT. E até se a mulher o deixou para ficar com outro, a culpa também foi do PT.
Foi nesse caldo de anti-petismo que o bolsonarismo conseguiu infiltrar uma série de ressentimentos, alguns movidos por preconceitos escancarados, para fins de mobilização política. Assim é que o pessoal do “ogronegócio”, com raiva de trabalhadores em terra e ambientalistas em geral, abraçou-se ao bolsonarismo. Da mesma forma, garimpeiros e grileiros da Amazônia que odeiam os índios fizeram o mesmo. E até gente ordinária e pacata, mas com pouca instrução política, passou a acreditar que alguns dos males da modernidade eram culpa do método Paulo Freire e da “cultura esquerdista” nas escolas (logo, culpa do PT).
Não é por acaso, portanto, que o “bolsonarista-raiz” espelha frequentemente aquilo que o brasileiro em geral tem de pior. Todos aqueles grandes pecados que nossa imagem cordial costuma esconder atrás do armário subitamente se viram acolhidos por esse novo “movimento”. Qualquer sujeito, por mais racista, misógino, violento, homofóbico e preconceituoso que fosse, seria bem recebido, desde que fosse “contra o PT”. Daí deriva uma sensação de pertencimento que torna praticamente impossível remover o sujeito atraído pelo encanto dessa “libertação” da bolha em que ele se inseriu. Por isso discutir com um minion é por vezes cansativo, quase sempre uma perda de tempo.
Ao concluirmos que, mais que um fenômeno político, o bolsonarismo é antes do mais um fenômeno psicológico, podemos passar a entender como podemos sair desse labirinto onde nos enfiamos.
Como?
É o que será analisado no decorrer desta semana.