Ano novo, vida velha. Eis a conclusão a que se chega neste finalzinho de janeiro de 2022.
Depois de experimentar um período de relativa calmaria, o cenário institucional brasileiro voltou a ferver nos últimos dias. Reprisando os embates do ano passado, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, resolveram medir forças novamente. Enquanto Moraes determinou que Bolsonaro comparecesse à Polícia Federal para prestar depoimento no inquérito que apura possível violação de sigilo cometido pelo Presidente, Bolsonaro resolveu dar de ombros e dar um bolo na PF. Resultado: mais um princípio de crise em Brasília.
O caso em questão não é novo e nem tampouco a matéria sob escrutínio do STF. Acusa-se o Presidente de ter vazado dolosamente dados contidos em um inquérito sigiloso que tramitava na PF. O procedimento em questão investigava possíveis violações à urna eletrônica e seu conteúdo – inteiramente inconclusivo, ressalte-se – foi utilizado na famosa live de Bolsonaro sobre nosso sistema de votação. Já faz algum tempo, mas toda a gente haverá de lembrar: durante a transmissão, supostamente destinada a provar a inconfiabilidade das urnas, Bolsonaro afirmou literalmente não dispor de provas a esse respeito.
Não se vai aqui entrar no mérito sobre a acusação feita contra o Presidente, até porque este que vos escreve não teve acesso aos autos do inquérito no qual o Presidente é investigado. Todavia, isso não impede que analisemos outro ponto polêmico acerca desse procedimento inquisitorial: a obrigatoriedade ou não de o investigado comparecer frente à autoridade policial para prestar depoimento.
Ninguém ignora que a Constituição estabelece o princípio da não culpabilidade, isto é, o princípio segundo o qual ninguém pode ser considerado culpado senão depois de não caber mais qualquer recurso contra a sentença condenatória do réu. No âmbito do devido processo legal, sempre se entendeu que o depoimento do investigado, seja à autoridade policial, seja ao juiz do processo, configura-se inequivocamente como um meio de defesa. E, como tal, seria perfeitamente possível que o réu simplesmente abrisse mão dele, recusando-se a depor. Trata-se, portanto, de mero corolário do famoso “direito ao silêncio”, ou, mais propriamente, o direito à “não auto-incriminação”.
Pois bem. Estabelecidas essas premissas, parece claro que o réu não pode ser obrigado a comparecer perante quem quer que seja. Não só porque isso deporia contra o direito ao silêncio, como também, por via reflexa, estar-se-ia produzindo uma forma de constrangimento ilegal. É dizer: se o réu não é pode ser obrigado a dizer palavra em seu depoimento, por que razão se haveria de obrigá-lo a ir depor? Só para ele ir lá e dizer que vai ficar em silêncio?
Foi justamente por conta disso que o Supremo Tribunal Federal, ao analisar as tão famosas “conduções coercitivas”, que fizeram parte da fama da Operação Lava-Jato, julgou inconstitucional as determinações judiciais de comparecimento compulsório de investigados perante as autoridades policiais. No julgamento da ADPF 444, o Supremo prestou tributo ao óbvio: se o réu não pode ser obrigado a se auto-incriminar, também não pode ser conduzido à força para depor perante um delegado.
No caso do inquérito em questão, o Ministro Alexandre de Moraes levantou uma questão relevante. O depoimento já havia sido marcado há mais de dois meses e o Presidente assentiu com o procedimento. Entretanto, por questão de agenda, o próprio Bolsonaro requisitara que o depoimento fosse adiado em 60 dias, medida que foi deferida por Alexandre de Moraes. Logo, o cancelamento do ato às vésperas de sua realização, sem qualquer justificativa superveniente, representaria uma contradição lógica entre a postura inicial do investigado (“vou depor”) com a postura de agora (“não vou mais”).
Em que pese a evidente descortesia com o súbito desejo de não comparecer a ato previamente designado, não há muito mais a se fazer contra Jair Bolsonaro por ter assim procedido. Como o próprio STF já julgou, não poderia haver uma improvável condução coercitiva do Presidente. Ademais, é no mínimo duvidoso que o não comparecimento de Bolsonaro ao depoimento pudesse, de alguma forma, caracterizar “crime de responsabilidade”. Afinal, como admitir que o exercício de um direito constitucionalmente previsto – não se incriminar – possa de algum modo ser objeto de sanção, mesmo de natureza política (como seria o caso de impeachment por crime de responsabilidade)?
Aparentemente, Jair Bolsonaro e Alexandre de Moraes estavam jogando pôker e o Ministro do Supremo não mediu com a necessária prudência a mão que tinha. Bolsonaro, então, pagou pra ver: o Ministro não tinha cartas.
Assim como ocorre em quase todas as crises planaltinas, esta provavelmente também entrará para o anedotário político na categoria do “chopp ruim”: quente, com muita espuma, mas pouca cerveja.