O impedimento de Dias Toffoli, ou A sina da mulher de César

A história é antiga, mas sempre vale a pena recontá-la.

Autoproclamado imperador de Roma, Júlio César mandava e, sobretudo, desmandava no grande Império dos tempos antigos. Divorciado da primeira esposa, César encontrou na filha de um antigo cônsul romano, Pompéia, o desejo de contrair novas núpcias.

Tudo ia bem no matrimônio do casal imperial romano. Certo dia, no entanto, Pompéia resolveu fazer uma festa em homenagem a Bona Dea, a “Boa Deusa”, representativa da virgindade e da fertilidade. Por conta da tradição festiva, nenhum homem era aceito nos festejos; somente mulheres. Um gaiato chamado Públio Clódio, todavia, resolveu tomar as vestes femininas e entrar de penetra nas festividades. Segundo consta, a idéia do jovem patrício era seduzir a própria Pompéia (o que dá a exata medida da falta de noção do perigo do sujeito).

Descoberta a fraude, Públio foi preso e processado por sacrilégio. Contra Pompéia, entretanto, não pesava em princípio acusação alguma. Fora ser a anfitriã da festa e suposto objeto de desejo do penetra invasor, de nada se poderia acusá-la. Mesmo assim, a boca miúda da Roma antiga insistia em lançar suspeitas contra ela. Entre a fofoca e os fatos, César resolveu ficar com as fofocas. Pediu divórcio de Pompéia e, para justificar o pedido desamparado de provas, enunciou a célebre frase:

“À mulher de César não basta ser honesta; tem de parecer honesta”.

E o que é que a mulher de César tem a ver com as calças neste exato momento?

Para quem não acompanhou o noticiário político-jurídico da semana, o Supremo Tribunal Federal julgou a validade do acordo de delação premiada firmado pelo ex-governador Sérgio Cabral. Rechaçado pela Procuradoria-Geral da República, mas firmado com a Polícia Federal, o acordo previa alguns benefícios ao ex-corrupto confesso, condenado a mais de 300 anos de cadeia por conta dos inúmeros crimes cometidos quando governou o estado fluminense.

Até aí, nada de novo sob o Sol. Criminosos que confessam os seus crimes para tentar barganhar redução do tempo de prisão através de acordos de delação premiada têm se tornado rotina no Brasil desde a eclosão da Operação Lava-Jato. O que tornava o acordo de Sérgio Cabral espinhoso era um capítulo muito específico da sua delação. Nele, o ex-governador do Rio acusava o Ministro Dias Toffoli, do STF, de ter recebido propinas de mais de R$ 4 milhões como contrapartida à venda de decisões judiciais.

O caso vazou para a imprensa e deixou o Supremo numa saia justíssima. Mesmo os casos mais delicados já julgados para a Corte nunca chegaram perto da acusação de corrupção de um de seus ministros. A despeito das inúmeras incongruências que dominam a jurisprudência do STF, a respeitabilidade do Tribunal e de seus ministros jamais fora colocada em xeque assim, de forma tão direta. Era necessário, pois, dar uma resposta institucional ao problema.

Atento a essa necessidade, o presidente do STF, Luiz Fux, marcou o julgamento da validade da delação de Sérgio Cabral. Para além do conteúdo da delação em si, havia uma questão preliminar de imenso relevo a ser resolvida: a possibilidade de a Polícia – à parte do Ministério Público – firmar acordos de delação com bandidos notórios.

Do ponto de vista jurídico, a discussão é de fato interessante. Como o monopólio da persecução penal exercido pelo Estado é atribuído ao Ministério Público, é de fato controverso admitir-se que a Polícia (civil ou federal) possa firmar acordos que resultem em benefícios processuais a criminosos confessos. Ademais, ao MP também compete o controle externo da atividade policial. Dessa forma, é realmente no mínimo duvidoso entender que seja possível à Polícia Judiciária firmar acordos dessa natureza quando o MP já os tenha rechaçado, como ocorreu no caso de Sérgio Cabral.

E daí?

Daí que, nos termos do art. 252 do Código de Processo Penal, o juiz – qualquer juiz, inclusive os ministros do Supremo – estão impedidos de exercer a jurisdição nos casos em que “ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito” (inciso IV). Como Toffoli havia sido diretamente implicado por Cabral, parecia evidente que se encontrava impedido de julgar a validade de sua delação.

Mas não foi isso que aconteceu.

Valendo-se de um verdadeiro artifício interpretativo, Toffoli deu uma espécie de “drible da vaca processual” no seu próprio impedimento. Argumentando que a questão preliminar sobre a competência da PF para firmar acordos de delação premiada era uma discussão “em tese”, o ministro alegou que não estava julgando diretamente o acordo de Sérgio Cabral. Logo, ele não estaria impedido de atuar no feito.

Que é uma interpretação deveras mambembe da lei, não resta a menor dúvida. As regras de impedimento e suspeição existem justamente para resguardar aquilo que é mais caro ao Judiciário em seu conjunto: a imparcialidade. Não se exige dos tribunais sequer que sejam justos- afinal, injustiças ocorrem em julgamentos o tempo todo. Mas é indispensável que o juiz mantenha a necessária equidistância das partes. Do contrário, o próprio conceito de Justiça estará maculado.

Quando Dias Toffoli resolveu somar seu voto a uma maioria já consolidada, contrária à validade do acordo, o ministro não atentou para o ensinamento milenar de Júlio César. Como separar o entendimento do ministro que foi delatado do entendimento do ministro que julga uma questão técnica da lei, quando ambas as personalidades se reúnem no mesmo indivíduo?

Parece claro que não é possível separar as personagens em dois compartimentos estanques, cujas deduções hermenêuticas não se condicionam reciprocamente. Ou bem o ministro julga uma questão sem que lhe pese qualquer suspeita de ser parte interessado na causa, ou então, havendo essa suspeita, retira-se em obsequioso respeito ao conceito de Justiça para que maledicências posteriores não venham macular a própria instituição da qual faz parte.

Porque, como ensinaria Júlio César, ao ministro do Supremo não basta ser honesto; tem também de parecer honesto.

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