O tuíte de Villas Boas e a prisão de Daniel Silveira

Quarta-feira de Cinzas de um carnaval que não aconteceu, mas de uma coisa todo mundo pode ter certeza: de tédio ninguém morre nesta terra onde canta o sabiá. Mas, como diria Jack, o Estripador, vamos por partes.

1 – O tuíte de Villas Boas

Tudo começou ainda no meio do carnaval, quando veio a público o livro da Fundação Getúlio Vargas contendo uma longa entrevista com o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas. No meio da entrevista, foi reavivado – por óbvio – o famoso tweet do general em abril de 2018, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no Supremo Tribunal Federal. Se à época já tinha ficado a impressão de que a mensagem havia sido uma maneira de intimidar o STF, agora, com os detalhes de bastidores acrescentados por Villas Boas, a coisa ficou ainda mais feia.

De acordo com o general, o texto da tuitada foi discutido a fundo por três dias por todo o Alto-Comando do Exército e pelos “comandantes de área”, segundo ele mesmo afirmou. O que à época poderia parecer apenas uma mensagem irrefletida e individual de um membro do Exército (ainda que fosse o Comandante), adquiriu macabras feições de verdadeira pressão institucional do braço armado do Estado contra o livre exercício da mais alta corte do país.

Villas Boas alega que a mensagem era “antes mais um alerta do que uma ameaça”. A divulgação seria resultado de uma “análise” segundo a qual o tweet serviria para baixar a pressão que civis – cujos nomes o general não declina – faziam sobre o Alto-Comando pedindo uma “intervenção militar”. Com todo o respeito que o General mereça, a sua argumentação não faz o menor sentido.

Em primeiro lugar, o Supremo não precisa de generais para saber o que pode e o que não pode fazer. Em um Estado Democrático de Direito, é dele – e de mais ninguém – a última palavra em matéria de interpretação da Constituição. Ele erra? Sim, erra muito. Mas a última coisa que o país precisa é de gente de farda querendo se sobrepor a uma interpretação do Supremo sobre o que eles acham da Constituição. 

Em segundo lugar, pode até ser que a intenção da mensagem tenha sido mais de um “alerta” do que de uma “ameaça”. Mas o general há de convir que é muito tênue a linha que divisa um e outro vocábulo. E, naquele contexto, com o julgamento de uma causa de grande sensibilidade e tamanha octanagem política, não caberia em hipótese nenhuma uma manifestação do chefe do Exército, mesmo que para “alertar” o Supremo. Até porque, quando a mensagem vem de um sujeito que comanda uma das forças do Estado, o “alerta” ganha bem outro significado.

Em terceiro lugar, se de fato havia civis e/ou militares – da ativa ou do pijama – pedindo “intervenção militar” ou coisa que valha, o Comandante do Exército tinha, por dever de ofício, de ou mandar prender todos eles; ou denunciá-los todos às autoridades competentes. Civil ou militar que conspira contra a ordem democrática comete crime. O “diálogo” que se tem que manter com essa gente é através de um processo judicial, aplicando a letra dura da lei. Não cabia de forma alguma tentar amainar o eventual “sentimento de revolta” de viúvas de um regime que o Brasil não faz questão nenhuma de repetir através de mensagens de “alerta” no Twitter.

Em um país, digamos, “normal, o correto seria que a Procuradoria-Geral da República abrisse um inquérito para investigar as circunstâncias nas quais o famoso tweet do General Villas Boas foi publicado. Quem redigiu o texto? Quem elaborou as versões iniciais, supostamente “mais incendiárias”? Quem teria ido ao general pedir “intervenção militar”? Tudo isso teria que ser investigado a fim de manter funcionando a plenos pulmões nossa jovem democracia.

Mas, como estamos no Brasil…

2 – A prisão de Daniel Silveira

Talvez “inspirado” pela divulgação do livro de Villas Boas, o Deputado Daniel Silveira resolveu despejar toda sua verve e fleuma numa live bombástica no YouTube. Utilizando-se do combo bolsonarista padrão – AI-5, intervenção militar, destituição de ministros do STF -, o Deputado Daniel Silveira conseguiu proferir a maior quantidade de asneiras por minuto quadrado desde há muito tempo. Em menos de 20 minutos, o deputado do Rio de Janeiro conseguiu condensar o verdadeiro suco de fascismo que é geralmente servido nas “melhores casas do gênero” nas redes sociais.

Talvez intuindo que da PGR não deveria vir nada de imediato, o Ministro Alexandre de Moares, nos autos do famoso “Inquérito das Fake News”, determinou de ofício a prisão “em flagrante” do deputado. Que tenha havido crimes contra a Lei de Segurança Nacional, parece consenso mesmo entre os que criticaram a medida. Discute-se, no entanto, se haveria ou não “flagrante” para decretar a prisão do deputado, já que parlamentares somente podem ser presos no curso do mandato por “flagrante de crime inafiançável” (lembrando que assim o são os crimes da LSN).

Independentemente do mérito quanto à questão do “flagrante”, o fato é que a temperatura política subiu horrores numa Brasília sempre deserta no carnaval. Há certo consenso de que, por mais discutível que fosse a prisão decretada por Alexandre de Moraes, “algo tinha que ser feito”. A virulência e absurdez do ataque proferido por Daniel Silveira não deixaram margem a meio-termo. Ou a Corte se impunha através de um ato de força, ou estaria desmoralizada. De certo modo, Silveira deu aos ministros a oportunidade perfeita de “responder” ao livro de Villas Boas sem precisar comprar uma briga direta com o general.

O corporativismo dos deputados induziria à conclusão de que, por pior que fosse o julgamento sobre os atos de Daniel Silveira, a Câmara jamais jogaria contra um dos seus. Todavia, se os nobres deputados resolverem passar a mão na cabeça de Silveira e resolverem relaxar a prisão do indivíduo, estará aberta a Caixa de Pandora para ataques ainda mais abertos ao Supremo Tribunal Federal. Se ameaçar dar uma “surra” em ministros ou pretender que um “novo AI-5” promova a “destituição” de todos os seus membros não for motivo para assombro, o que mais seria?

A Câmara ainda não se reuniu para deliberar sobre a prisão e é até possível que deixe tudo para a semana que vem. Articulações de bastidores correm aos montes em busca de uma maneira de “apaziguar” os ânimos com o Supremo sem, necessariamente, oferecer o escalpo de Daniel Silveira em troca. Ouvem-se rumores de que a Mesa da Câmara tentaria suspender o deputado de seu mandato, em troca do relaxamento de sua prisão.

O problema, no entanto, é que a corda foi esticada até um ponto em que é difícil voltar atrás. Qualquer “solução” que não passe por algum tipo de expurgo a jato do deputado metido a valentão será entendida como capitulação do Supremo diante da barbárie. E, o que é pior, um convite para que novos – e mais virulentos – ataques voltem a se repetir no futuro.

O que estará em jogo nos próximos dias, portanto, vai muito além do caso particular de Daniel Silveira e dos crimes que porventura tenha cometido. O que estará em jogo é: que tipo de democracia – se é que teremos algum tipo de democracia – o Brasil quer ter para o futuro?

Saberemos a resposta nos próximos dias.

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