Começou hoje no Supremo uma discussão que pode mudar inteiramente o rumo da mais famosa operação anti-corrupção da nossa história: a Operação Lava-Jato. Fundada numa suposta omissão da lei, a questão vai muito além das decisões que vieram de Curitiba e suscita uma boa discussão entre os princípios expressos no texto constitucional e a concretização destes através do legislador ordinário, quando formula as leis que conhecemos.
Para quem não acompanhou o imbróglio, o caso em questão diz respeito a um habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, Aldemir Bendine. O fundamento é basicamente um só: como Bendine foi condenado (também) com base nas palavras de um réu que aderiu à delação premiada, caber-lhe-ia a prerrogativa de falar por últimos nos autos, inclusive e especialmente depois do réu delator. A segunda turma do STF deu-lhe razão e mandou o processo retornar para sentença em 1º grau.
Mas por que isso aconteceu?
Do ponto de vista legal, não há qualquer norma específica sobre o tema na lei de delações premiadas. Aplica-se, portanto, a regra geral prevista no Código de Processo Penal. Encerrada a instrução (colheita de provas, depoimentos de testemunhas, perícias, etc.), abre-se às partes prazo para fazerem uma espécie de “resumo” do processo. A esse resumo dá-se o nome de “alegações finais”, que são apresentadas tanto pelo Ministério Público quanto pelo(s) réu(s).
De acordo com o CPP, o primeiro a apresentar as alegações finais é o Ministério Público. Por quê? Porque, traduzindo em termos leigos, quem está com o seu na reta é o réu. Uma vez que a este é assegurada “ampla defesa”, estabeleceu-se uma regra segundo a qual, para que a defesa fosse realizada em sua plenitude, o acusado deveria ter o direito de falar por último, inclusive para rebater os argumentos levantados pelo Ministério Público em suas alegações finais. Havendo vários réus, no entanto, o prazo assinalado a estes é comum, ou seja, todos falam no mesmo prazo, embora sempre depois do MP.
Qual o problema, então?
O problema, como você já deve ter percebido, é que o delator não é uma espécie normal de réu. Ele firmou um compromisso com o Estado, através do Ministério Público, de contar tudo o que sabe em troca de redução na pena aplicada. E, por definição, o delator sempre delata alguém, que passa a ser “acusado” não somente pelo MP, mas também pelo delator. Se sua delação não vingar, isto é, se não forem provadas as suas alegações, todos os benefícios que ele logrou alcançar com o acordo judicial podem ir pelo ralo.
E daí?
Daí que, se houver dois ou mais réus em um determinado processo, e um deles se tornar delator, parece claro que os demais, para poderem exercer de fato a plenitude de suas defesas, devem ter o direito de falar depois dele. Afinal, o que quer que ele venha a relatar em suas alegações finais será, em grande parte, prejudicial aos réus que não aderiram à delação.
Pode-se sempre alegar, não sem alguma dose de razão, que a lei da delação premiada nada diz a respeito. Portanto, seria no mínimo duvidoso estabelecer diferenciar onde o legislador não diferenciou para estabelecer direitos diversos para réus em um mesmo processo, havendo entre eles um delator. Todavia, é lição basilar de Direito que, no confronto entre uma norma constitucional – que tem hierarquia superior – e uma lei ordinária – caso do CPP -, deve prevalecer a Constituição. Do ponto de vista de interpretação constitucional, não há margem a dúvidas: o caso é, sim, de anulação da sentença.
Uma solução salomônica, que pode eventualmente ser adotada pelo Supremo ,seria a de considerar que somente poderiam ser anuladas as decisões tomadas nos casos em que os réus delatores tenham colocado em suas alegações finais fatos que tenham sido utilizados para embasar a condenação de outros réus. Isso porque, no processo penal, o réu se defende contra os fatos, não contra as teses jurídicas. Logo, isso mitigaria em muito o risco de haver uma avalanche de anulações de sentenças proferidas pelo ex-juiz Sérgio Moro.
Seja como for, trata-se de uma discussão profunda, a decisão em si não é fácil e vai muito além do maniqueísmo barato de que “quem defende essa tese está contra a Lava-Jato e a favor da corrupção”. A ver, contudo, que direção que o Supremo irá tomar.