Final de ano é época de engatar a marcha lenta. Nada de novo se planeja até a virada do ano, a menos que diga respeito às próprias festas da réveillon. Quanto aos planos, os mais urgentes cuja resolução pouca coisa falta ganham algum impulso, enquanto os que ficaram pelo caminho ressurgem dentro da longa lista de “promessas de ano novo”. Esse é o esquema geral da maioria da população, das empresas e até das instituições públicas.
Mas não o do STF.
Todo final de ano, a mesma história. Um processo esquecido ali, uma ação declaratória perdida acolá, eis que de repente, não mais que de repente, surge do nada uma liminar pré-recesso que bagunça o coreto das festividades de final do ano. Dessa vez, a novidade veio por obra do ministro Marco Aurélio Mello. Numa canetada, Marco Aurélio determinou a imediata soltura de todos os presos cujas sentenças condenatórias ainda não haviam transitado em julgado, em que pese a confirmação da decisão por um tribunal de 2º grau. No rol dos potenciais beneficiados pela medida, o nome mais ilustre, sem dúvida, é o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Pego de calças curtas, o pessoal do PT correu sobressaltado pra tentar libertar o ex-presidente. Da outra banda, os procuradores da Lava-Jato convocaram uma coletiva de imprensa na cidadela de Curitiba para criticar a decisão. Antes que qualquer preso tomasse o meio-fio, mais uma vez o presidente do STF, Dias Toffoli, deu o dito pelo não dito e interveio para cassar a decisão de um colega.
Para um noticiário que normalmente é modorrento e centrado nas enfadonhas retrospectivas anuais, não poderia haver melhor achado. Afinal, é de manchetes que vive a grande imprensa, e nenhuma notícia parece atrair mais atenção do que o estado carcerário do ex-presidente Lula. Todavia, para o público em geral, fica a dúvida:
“Mas por que é que isso acontece?”
Há mais razões entre o céu e a terra do que sonha a filosofia humana, já diria Shakespeare. E, obviamente, uma só razão não contaria a história desta liminar concedida por Marco Aurélio Mello. Desde a escancarada manipulação da pauta pela ex-presidente do Supremo Carmen Lúcia, passando pelos repetidos pedidos de inclusão em pauta dos processos afetos à matéria que estão sob sua relatoria até as reclamações verbalizadas nos microfones, Marco Aurélio sempre reclamou do fato de o Supremo não encarar em definitivo o debate sobre a execução provisória da pena de condenados em 2º grau. Como Marco Aurélio pode ser acusado de tudo, menos de ser covarde, fez por força o que a presidência do Supremo – primeiro sob Carmen Lúcia, depois sob Toffoli – não quis fazer por opção: jogou a liminar no ventilador e pagou pra ver a reação.
Independentemente da opinião que se tenha sobre o mérito da questão, o fato é que o STF desde há muito deixou de trabalhar como uma “Corte de Justiça”, entendida aqui no sentido de um órgão colegiado organizado de maneira a fazer com que várias cabeças reunidas errem em conjunto, sobrepondo-se aos erros individuais dos juízes singulares. Por conta da bisonha quantidade de processos que recebe anualmente, nós deixamos de ter “um” Supremo para termos, na verdade, “onze” Supremos.
De fato, faz tempo que os ministros do Tribunal chegaram à conclusão de que não conseguiriam, coletivamente, dar vazão à quantidade colossal de processos que assoberba os seus escaninhos. Qual foi a solução encontrada? Deixar com que 90% dos processos sejam resolvidos monocraticamente, isto é, por um único juiz, restando ao Plenário – instância natural de resolução da Corte – decidir os outros 10% que realmente importam.
Como qualquer leigo pode imaginar, a desnaturação de um órgão colegiado em onze ilhas que não se comunicam não se dá à margem de consequências indesejáveis. Além de atacar a febre (a falta de celeridade processual), mas não a doença (a quantidade de processos que chega na Corte), esse processo progressivo de individualização decisória transforma os ministros do Supremo quase em super-homens do Direito, dotados de um poder absolutamente desmedido em algo que costumava ser uma República. E aí temos as famosas “liminares de fim de ano”, rol da qual a última expedida por Marco Aurélio é apenas o exemplo mais reluzente.
Parece evidente, portanto, que a questão passa menos pela discussão sobre o instituto das liminares – medidas de urgência importantíssimas em qualquer sistema jurídico – e mais pela quantidade de processos que o STF recebe. Com mais tempo, ele poderia decidir coletivamente, como toda Corte o faz. O problema, no entanto, é saber se os ministros do Supremo estão dispostos a abrir mão de um poder que o legislador de 1988 jamais sonhou em lhes outorgar: o poder de, sozinhos, decidirem como reescrever a Constituição.
Pelo que a experiência tem demonstrado até agora, tudo indica que não.