Em tempos nos quais o mundanismo dá as cartas e as pessoas procuram se afastar de qualquer forma de espiritualidade, talvez seja uma boa hora para retomar uma das seções mais queridas deste espaço: a sempre maltratada Religião. E, já que é assim, nada melhor do que falar um pouco mais sobre o livro-base de grande parte dos fiéis deste mundo: a Bíblia Sagrada.
Bíblia Sagrada
A primeira coisa a ser dita sobre a Bíblia é talvez aquela que surpreenda a maior quantidade de gente. Por definição, a “Bíblia” é uma entidade esotérica. Ou, numa abordagem mais clara, não existe uma Bíblia, única e universal, mas várias Bíblias. Embora a definição pareça óbvia a quem esteja familiarizado com um pouco de teologia, a idéia por vezes não ressoa tão clara mesmo para os crentes mais fervorosos.
De fato, a “Bíblia” não existe como um livro encadeado, daqueles com começo, meio e fim, elaborado por um único autor (em que pese todos os textos terem sido produzidos sob inspiração divina). Trata-se, na verdade, da reunião de diversos escritos, elaborados em diferentes épocas, por pessoas as mais diversas, na qual fatos históricos (Êxodo) se misturam com alegorias sobre o fim dos tempos (Apocalipse), enquanto são ladeados por textos que procuram inspirar sabedoria naquele que os lê (Eclesiastes). E, entre o primeiro e o último de seus autores, acredita-se que se passaram, no mínimo, 1500 anos.
Na compilação mais antiga, por exemplo, a Bíblia judaica (conhecida por Tanakh) reúne apenas 39 livros, com destaque para a Torá, que nada mais é senão os 5 livros do Pentateuco católico: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Uma vez que os judeus não reconhecem Jesus como a encarnação de Jeová, não há nela – por óbvio – nenhum dos livros que compõem o Novo Testamento, como os quatro evangelhos e as epístolas de Paulo. Nas Bíblia católica e protestante, por outro lado, todos os 27 livros que perfazem o Novo Testamento estão presentes, ao lado de alguns mais do Antigo.
Infelizmente, os problemas com a Bíblia não se resumem à quantidade de textos que uma e outra religião adotam para compô-la. Como os textos originais foram produzidos numa época em que não havia impressora nem muito menos máquina fotocopiadora, há dúvidas sobre a fidedignidade de várias passagens bíblicas em relação àquilo que foi efetivamente escrito pelo seu autor. Os chamados “copistas”, por exemplo, responsáveis por copiar textos escritos para que depois fossem espalhados pelo mundo, não costumavam fazer distinção entre o texto original e anotações à margem de quem manuseara o original. Assim é que várias “notas de rodapé” sobre os escritos originais podem ter ido parar inadvertidamente nas cópias que foram distribuídas adiante, fazendo com que o sentido original do texto acabasse se perdendo ou, no mínimo, fosse desvirtuado.
Pra piorar, não houve sequer uniformidade na língua escolhida para perpetuar as inspirações divinas. Parte delas foi escrita em aramaico, parte em hebraico e o restante em grego. Foi somente no século IV, com a ascensão do cristianismo no Império Romano, que São Jerônimo traduziu os textos que se conhecia para o Latim clássico. E, da Vulgata até a descoberta da imprensa por Gutenberg, passaram-se outros 1000 anos. Só isso dá a exata dimensão do quanto pode eventualmente ter se perdido pelo caminho.
No que toca à nossa querida derradeira flor do Lácio, a primeira tradução completa dos textos bíblicos, elaborada por João Ferreira de Almeida, só veio a ser publicada em 1748. No Brasil, contudo, isso só foi ocorrer um século mais tarde, quando o Bispo Joaquim, de Nossa Senhora de Nazaré, fez a sua tradução da Vulgata. Como traduções de textos traduzidos geralmente não resultam em um texto fiel ao original, ficamos nós com o que havia para se virar.
Felizmente, um dedicado tradutor português – curiosamente um agnóstico – resolveu se dedicar a suprir essa falha e está imerso em um trabalho incessante de tradução dos textos bíblicos diretamente do grego para o português, cortando a Vulgata como intermediária. Embora seja certo que é possível recorrer à maioria dos textos originais escritos em aramaico e hebraico, ainda assim a Bíblia em grego é considerada o mais próximo da fidedignidade que se pode alcançar.
Para quem estiver interessado, o nome do tradutor é Frederico Lourenço e ele já publicou quatro tomos de sua magnífica obra. A tradução não segue a ordem normalmente adotada nas bíblias, mas o trabalho é conduzido de maneira elegante e permite àqueles que se interessarem – mesmo quem eventualmente não acredite em Deus – a estudar melhor o livro mais importante da história da humanidade.