É comum dizer-se no futebol do Rio de Janeiro que “há coisas que só acontecem com o Botafogo”. Com os acontecimentos das últimas semanas, já se pode dizer – parafraseando o anedotário carioca – que, no mundo jurídico, “há coisas que só acontecem com Luiz Inácio Lula da Silva”. Depois do circo de horrores protagonizado por Sérgio Moro e três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, agora foi o próprio Supremo Tribunal Federal a protagonizar um episódio do tipo “comédia-pastelão” semelhante.
Para quem não acompanhou o noticiário da semana passada, a Folha de São Paulo ingressou com uma reclamação no STF. O fundamento da ação era de que a juíza Carolina Lebbos, responsável pela execução da pena do ex-presidente Lula, violara o decidido na ADPF nº. 130, que revogou na prática a Lei de Imprensa, ao negar ao jornal paulista o direito de entrevistar o encarcerado.
Vá lá que o argumento era mais frágil do que a teoria da bala única, pois somente através de um esforço argumentativo claramente malabar se poderia inferir da negativa da juíza de Execução Penal uma eventual violação à decisão proferida na ADPF nº. 130. Mesmo assim, o caso foi enviado à mesa do Ministro Ricardo Lewandowski que, numa canetada, julgou logo o mérito da questão, autorizando a Folha a realizar a entrevista. “Cumpra-se”, pois?
Não exatamente.
Pouco tempo após a publicação da decisão, o Partido Novo ingressou com uma suspensão de liminar, distribuída à presidência da Corte. Como o Ministro Dias Toffoli não estivesse disponível (era uma sexta final de tarde), Luiz Fux tomou para si o dever de decidir a questão e, com outra canetada, cassou a decisão de Lewandowski.
Sem se fazer de rogado, Lewandowski voltou a autorizar a entrevista, mandando ignorar a contra-ordem anterior de Fux. Desconcertado diante de duas determinações judiciais conflitantes, o Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, enviou ofício a Dias Toffoli perguntando qual das duas decisões deveria cumprir. Toffoli disse que valia a decisão de Fux e deu o caso por encerrado. Mas os problemas jurídicos estavam só começando.
Pra começo de conversa, o Partido Novo não tinha legitimidade processual para apresentar uma suspensão de liminar, uma derivada da antiquíssima Suspensão de Segurança, a famosa “SS” do jargão jurídico. Só quem pode manejar o instrumento é o Poder Público. E, mesmo nesse caso, somente “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” (art. 4º da Lei nº. 8.437/92). Convenhamos, é difícil imaginar que uma entrevista de Lula à Folha configuraria qualquer dessas hipóteses.
Fora isso – e este talvez seja o ponto mais grave -, não compete ao Presidente do STF (Dias Toffoli), nem ao vice respondendo pela Presidência (Fux), nem muito menos a nenhum outro ministro do Supremo, “cassar” a decisão de um colega através de uma decisão liminar. Não há, ao contrário do que pensa o vulgo popular, qualquer hierarquia entre seus ministros. Ao presidente compete unicamente organizar a pauta e representar institucionalmente a Corte. Mas isso não lhe assegura a condição de primus inter pares na mais alta Corte de Justiça do país.
Na verdade, por mais que queiram, os ministros do Supremo não podem tudo. Ainda que disponham de imenso poder para decidir monocraticamente um sem-número de questões, não se lhes é dado o direito de revogar a decisão de outro colega. E a razão para isso é muito simples: se um ministro do STF pudesse revogar a decisão de outro ministro, cairíamos em um dantesco festival de ordens e contra-ordens, como ministros cassando uns dos outros as suas decisões.
Se de fato a decisão de Lewandowski era equivocada, caberia a quem de direito (no caso, o Ministério Público) recorrer da decisão, seja para a II Turma (da qual faz parte Lewandowski), seja para o plenário do Supremo. O que não é possível é admitir que uma parte ilegítima (Partido Novo) maneje um instrumento absolutamente incabível (Suspensão de Liminar) para alcançar um resultado que qualquer segundanista de Direito sabe ser impossível (um ministro cassando a decisão de outro ministro). Quando isso acontece, fica-se com a impressão de que, assim como ocorreu no tragicômico episódio do TRF-4, certas decisões são tomadas levando-se em consideração mais o nome na capa do processo do que o seu conteúdo.
Com o samba atravessado da semana passada, pode-se concluir que o problema do Supremo Tribunal Federal não é ter chegado no fundo do poço. É que ele não pára de cavar.