Acreditando na criança

Rafael nunca fôra o mais forte dos bebês. Desde a mais tenra idade rejeitava comida e dava trabalho quando queriam pô-la em sua boca. No mais das vezes, os estressantes momentos da refeição eram resolvidos de duas formas: ou os pais se davam por vencidos; ou – o que era mais frequente – recorria-se à avó, que conseguia fazer o miúdo deglutir duas ou três colheres do mingau.

Talvez em razão da fraqueza física, Rafael demorou bastante tempo a falar. Fora os incontornáveis “mamã”, “papá” e “vovó”, sua comunicação era bastante restrita. Por gosto e por temperamento, a criança deixava que as coisas se resolvessem sozinhas, sem que ele precisasse intervir para colocar o trem nos trilhos. Obviamente, daí não adviria um bebê assaz comunicativo, muito menos falador. Um dia, contudo, a história foi outra.

No meia de uma viagem de férias, os pais de Rafael – assim como o restante da família – haviam se dirigido para a casa de praia de alguns parentes. Oportunidade para descansar, o sol, o mar e a areia desanuviavam qualquer cabeça, expurgando os problemas que ficaram em casa. Para as crianças, era a chance para aproveitar a primarada com algum grau de liberdade, sem ter que ouvir grito dos pais ou ser constantemente assediado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Rafael, claro, não fugiu à regra.

Lá pelas tantas, contudo, os instintos mais primitivos passaram a assolar o guri. A fome, sempre uma doce aliada, tornara-se uma incômoda companheira de barriga. Forçado a sair de seu estado natural de passividade graças à evolução da espécie, Rafael deixou as brincadeiras de lado e foi à sala, onde estavam seus pais e os demais adultos da residência. Estreitando-se perto da mesa onde todos jogavam cartas, Rafael começou a balbuciar:

“Gagau”.

Do outro lado, encontrou uma mãe pouco receptiva ao seu flagelo:

“Que foi, menino? Vá brincar com seus primos, vá”.

Ao que o garoto respondeu:

“Gagau”.

Uma das tias, compadecida do pobre infante, perguntou à mãe:

“Será que ele não está com fome, não?”

Cética, a mãe voltou a renegar o estado de privação de seu rebento:

“Não é, não. Ele nunca pede mingau”.

A negativa foi em vão. Os pedidos seguiram insistentes, e cada vez menos espaçados:

“Gagau. Gagau. Gagau”.

Depois de uns 10 minutos suplicando pela comida, a mãe resolveu enfim atender à súplica do filho. Levantou-se da cadeira, foi até a cozinha, pegou o leite e a maizena e começou a preparar o mingau da criança. Nesse momento, os olhos do miúdo brilharam. Ao avistar o fim iminente de sua aflição, o garoto olhou para a mãe e, enquanto batia palmas, disse:

“Gagau. Êêêêê….”

E nunca mais a mãe voltou a duvidar da fome de seu rebento.

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