A proposta de impeachment de Dilma Roussef

Desde 1999 não se via algo igual.

Quando o senso comum determina que todo novo governo começa cheio de gás e montado em cima da legitimidade extraída das urnas, o segundo mandato de Dilma Roussef dá ares de ter acabado antes de começar. À crise econômica soma-se a crise política, que redundou na eleição de um notório desafeto à presidência da Câmara dos Deputados.

No meio desse turbilhão todo, eis que Ives Gandra da Silva Martins lança um artigo na Folha de São Paulo dizendo que há base jurídica para o impeachment da presidente. Segundo Ives Gandra, a suposta omissão ou incompetência de Dilma na aprovação da ruinosa compra da refinaria de Pasadena daria fundamento ao pedido de impedimento da presidente eleita. Restaria, somente, saber se haveria sustentação política para levar a empreitada adiante.

Com a ressalva de que o texto de Ives Gandra é apenas um resumo de um parecer seu, ao qual este que vos escreve não teve acesso, a tese exposta apenas comprova que, como constitucionalista, Ives Gandra é apenas um bom tributarista.

Pra começo de conversa, é bizarro entender que a presidente da República possa ser impedida de continuar no cargo por conta de uma decisão empresarial equivocada que tenha tomado antes de assumi-lo. Afinal, o art. 4. da Lei 1.079/50 é inequívoco ao determinar que são “crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”. Logo, o enquadramento do sujeito em qualquer dos crimes enumerados na lei depende de uma condição pessoal incontornável: o exercício da presidência da República. Ou, em português mais claro, somente quem é presidente da República pode responder pelos crimes nele definidos. Antes disso, não há crime nenhum.

Em segundo lugar, é no mínimo falacioso o argumento de Ives Gandra segundo o qual a suposta leniência da presidente da República com os (ir)responsáveis por Pasadena possa ser enquadrada no tipo descrito no número 3 do art. 9. da Lei de Crimes de Responsabilidade. A uma, porque seria necessário provar que o erro no parecer técnico da compra de Pasadena derivaria de “manifesto delito funcional”. A duas, porque é no mínimo discutível querer entender que compete ao presidente da República “tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados”, quando a responsabilização penal incumbe ao Ministério Público – responsável pela acusação – e ao Judiciário – responsável pelo julgamento.

Na verdade, a alegada “base jurídica” para o impeachment nada mais é do que uma maneira de atalhar a insatisfação com as medidas anunciadas por Dilma Roussef no começo do seu segundo mandato. Alta na conta de luz, aumento do preço da gasolina, redução de direitos previdenciários e corte no orçamento; tudo isso já se sabia necessário quando rolava a campanha presidencial de 2014. Mesmo assim, o Governo enveredou pelo caminho fácil e demonizou a palavra “ajuste” durante a campanha como sinônimo da ruína produzida na era tucana. Agora, paga na forma de impopularidade o preço da mistificação.

Não que isso seja novidade no panorama político. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, produziu malogro semelhante quando manteve artificialmente a paridade cambial com medo de perder a reeleição. Quando foi forçado pelo mercado a desvalorizar o real em janeiro de 1999, o ronco produzido na população, foi igual ou maior do que o de agora, com direito a Tarso Genro pedindo renúncia do presidente e a convocação de novas eleições.

O problema, no fundo, está em querer transformar a contradição entre o discurso político e a prática governamental em um fator de deslegitimação do mandato outorgado pelas urnas. Foi nessa linha que Fernando Henrique Cardoso (logo ele!) defendeu a tese da “legalidade ilegítima”, ao questionar a reeleição de Dilma Roussef.

Pode-se, por exemplo, chamar de estelionato eleitoral o aumento na taxa de juros. Pode-se, ainda, dizer que o Governo deliberadamente ocultou os riscos de racionamento elétrico. Mesmo assim, isso não autoriza ninguém a tomar de volta o mandato da presidente. Político que promete uma coisa e faz outra não compromete a legitimidade institucional. Compromete a decência. Cabe aos eleitores julgá-lo, não cabendo julgamento do que eles tenham decidido. Em um Estado Democrático de Direito, o eleito pela maioria é o legítimo governante. O resto é empulhação.

Um dos males da ainda juvenil democracia brasileira é querer atalhar os obstáculos do processo político através de saídas supostamente fáceis. Se um governante é ruim, vai lá e tira-se, antes de terminado o seu mandato. Pouca gente se dá conta de que foi justamente esse raciocínio que levou o país a ficar 21 anos sob ditadura militar, com o povo sem poder votar sequer para eleger vereador.

Ao contrário do que sustenta parte da oposição, não existe no país um governo ilegítimo. Na pior das hipóteses, há um mau governo sufragado por 54 milhões de votos no segundo turno das eleições. A democracia brasileira não está ferida. Pelo contrário. Nunca esteve tão bem.

A contradição, portanto, está em Fernando Henrique Cardoso. Quanto à legitimidade, vai bem, obrigado.

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6 Responses to A proposta de impeachment de Dilma Roussef

  1. Avatar de André André disse:

    Correto, centrado e bem delineado seu posicionamento em defesa do Estado Democrático de Direito. Estou junto nessa nobre blogueiro.

    Lamentável que existam lacaios que alimentem um clima de golpismo injustificável e perigoso, sem qualquer fundamentação, para tentar apear do poder um governo legitimamente eleito. Sabemos muito quem pode se arrebentar com isso.

    Que a grande mídia esteja diariamente trabalhando nesse sentido já não é novidade alguma. Como disse hoje Mário Magalhães: “o golpismo vulgar anda por aí, na imprensa viúva do lacerdismo e em certos círculos avessos à soberania do sufrágio popular”.

    Contudo, a revelação feita pelo repórter Mário Cesar Carvalho de que foi um advogado de Fernando Henrique Cardoso e integrante do conselho do Instituto FHC quem pediu um parecer ao jurista Ives Gandra da Silva Martins sobre pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, no minimo é de deixar os verdadeiros democratas enojados.

    Um abraço.

  2. Avatar de Mourão Mourão disse:

    É meu caro, sem entrar no mérito da competência ou incompetência política e administrativa do governo, seu excelente artigo, fundamentado naquilo que você conhece bem mais do que muitos dos “príncipes ” da matéria, ou seja o Direito, bem demonstra como a política (com p minúsculo) pode amesquinhar o pensamento de figuras de renome nacional. Isso antes já aconteceu com sectários do PT, em relação a FHC.

  3. Avatar de tai777 tai777 disse:

    Não me canso de parabenizar Arthur! Excelente texto!!! Esse é o mais brilhante! Desse blog poderia sair um bom livro.

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