O terrorismo jurídico, ou Os esqueletos jogados para a posteridade

Vez por outra, assiste-se no noticiário que determinada causa a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal pode causar “impactos bilionários” para o Governo. Quando não é a correção da poupança de algum congelamento econômico, é alguma empresa aérea que teve suas tarifas congeladas ou mesmo a disputa sobre a interpretação de um tributo manifestamente inconstitucional.

Sempre que isso acontece, seguem-se comentários terroristas de ministros de Estado e economistas do tal do “mercado” falando sobre os impactos negativos que tais decisões podem ocasionar à economia e ao próprios país. Apenas para citar um exemplo, houve memorial de banco no caso da correção dos planos econômicos que sustentou a “derrocada do sistema financeiro como um todo” se o STF desse ganho de causa aos poupadores.

Há quem pense fazer isso parte do jogo. Afinal, cortes supremas sempre têm uma componente política, e os ministros, por dever de ofício, devem estar preparados para aguentar as pressões de todos os lados. Sem querer dar uma de inocente, há algo de cínico nessa avaliação. Vamos a um exemplo prático:

Imagine que o Governo faça um confisco à la Collor. O objetivo é arrecadar dinheiro para fazer frente à calamitosa situação da saúde. Com uns R$ 50 bilhões a mais no caixa, o Governo criar uma rede hospitalar de primeiro mundo, com nosocômios de ponta, médicos bem remunerados e uma excelente estrutura de apoio. Seis meses depois, os resultados são visíveis: menos doenças, índices de mortalidade em queda e população satisfeita. Tudo muito bom, tudo muito bem.

Ocorre que um desses “chatos” de plantão – MPF, OAB, associações de consumidores – resolve ir contestar no Supremo o confisco. A despeito do fim nobre da medida, a Constituição proíbe o confisco do contribuinte (ou empréstimo compulsório sem lei complementar, que foi o que aconteceu em 1990). A cobrança deve ser sustada e o dinheiro arrecadado, devolvido.

No dia seguinte, aparecem os ministros na televisão: “Isso não pode ser. Estão atuando contra o Brasil. Não querem que o Governo ajude o povo”. É isso, ou então chantagens mais diretas, do tipo: “O que vamos dizer à mãe que está com seu filho internado? Vamos dizer ao doente que não podemos mais cuidar dele?”

Por trás dessa chantagem barata, esconde-se a proposição segundo a qual, em determinadas circunstâncias, é admissível dobrar a lei se for para alcançar determinado fim. Ou, visto por outro ângulo, podemos tomar qualquer tipo de medida, por mais ilegal que seja, desde que possamos justificá-la por um aspecto prático.

Do ponto de vista legal, não há qualquer abertura para tal discussão. O princípio básico de todo sistema jurídico é de que as normas devem ser aplicadas para todos, independentemente do que aconteça. Quando se abre uma brecha na regra jurídica, por menor que seja, cai-se numa fronteira perigosa de confronto de valores. É dizer: o que pode ou não ser usado como pretexto para escusar o seu cumprimento? Pior: quem vai definir o que é ou não “justificável”?

É justamente esse raciocínio enviesado que justificou, por exemplo, o Plano Cruzado. Todo mundo sabia que o congelamento das tarifas dos concessionários era ilegal. Mesmo assim, decidiram tocar o barco adiante. Afinal, o fim almejado era mais do que justificável: acabar com a inflação no país.

Pode parecer trivial, mas são ações dessa natureza que perpetuam um estado de coisas que faz o Brasil ser o o país que é. Não é por acaso que um empresário resolve sonegar voluntariamente um tributo devido. O cara pensa: “O Governo não respeita as regras do jogo. Por que eu devo respeitá-las?” Trata-se, tão-somente, da aplicação do preceito newtoniano: ação e reação.

Como se isso não bastasse, há algo de sórdido em querer justificar a negativa de aplicação da lei por conta do tamanho do rombo acumulado no tempo. Como Elio Gaspari demonstrou certa vez, se a banca tivesse entrado em acordo com os poupadores há 20 anos, a fatura não sairia por mais de R$ 10 bilhões. Lutaram a cada palmo de tribunal para se evadirem do pagamento. Agora, com duas décadas de juros e correção nas costas, jogam com a carta do terrorismo para ver se conseguem sair sem pagar nada.

O que o Brasil tem de entender é que, a cada vez que a ordem legal é quebrada, uma parte de nossa civilização se perde. Quando o Supremo ignora o terrorismo e assegura o primado da lei sobre as conveniências políticas e/ou econômicas de plantão, o nosso status civilizatório se eleva.

Que esse seja o espírito a governar nossa Suprema Corte nos próximos meses.

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