Uma nova geração de expatriados

Quem tem um pouquinho mais de idade vai se lembrar.

No começo dos anos 80 e por toda aquela década – designada injustamente de “perdida” -, uma geração inteira de brasileiros arrumou as malas e tomou o caminho do aeroporto. Ao contrário do que acontecera na década de 70, não se tratavam de exilados expulsos do país pela perseguição de uma insana ditadura, mas de milhares de brasileiros que não viam mais qualquer perspectiva de viver com alguma dignidade no país em que nasceram.

Não era pra menos. O milagre econômico dos militares transformara-se em vinagre desde a segunda crise do petróleo (1979). Com as contas externas em frangalhos, o Brasil entrou nos anos 80 cambaleando – pediu socorro ao FMI em 1982 – e terminou quebrado – decretou moratória em 1987. Nesse meio tempo, a inflação saltou de 100% ao ano para terminar a década com 84% ao mês. O crescimento anual do PIB à razão de 14% parecia somente uma miragem que surgia olhando-se pelo retrovisor da história. A única alternativa, portanto, era sair do país e tentar a sorte em outras paragens. Entre o começo e o fim da década, estima-se que pelo menos 500 mil brasileiros tenham deixado o país para viver no exterior.

Hoje, claro, a situação econômica é diferente. A dívida externa de há muito deixou de ser uma dor de cabeça; a inflação, embora ainda alta, foi trazida para patamares civilizados; e o crescimento pode não ser lá um Brastemp, mas também não se enxerga no horizonte uma queda de 3% na produção anual, como aconteceu, por exemplo, em 1987. Ninguém – ou, pelo menos, quase ninguém – pensa em sair do Brasil porque aqui faltariam oportunidades. Mesmo assim, algo de estranho acontece no fluxo migratório brasileiro.

Já faz algum tempo que o cotidiano deixou de ser visitado somente por crimes comuns, como roubos e furtos, para ser cada vez mais estrelado por crimes bárbaros, como crianças queimadas em ônibus e detentos degolando colegas nas prisões.

Aquilo que era pra ser encarado sempre como um negócio ignominioso, abjeto mesmo, passou estranhamente a fazer parte do dia-a-dia do cidadão, de tal modo que ninguém mais se comove com o horror diário. A recorrência do absurdo anestesiou a população. Como os pombos nas praças, aquilo que antes provocava repulsa é visto agora apenas como mais um inconveniente na paisagem. E a vida segue…

Do outro lado do mundo, no entanto, os padrões de normalidade acabam trazendo alguns de volta à realidade. Há alguns meses, noticiou-se que a polícia islandesa baleou um sujeito com problemas mentais que aterrorizava uma população local. Era a primeira vítima de uma ação policial em toda a história do país. O caso gerou uma comoção tão gigantesca que obrigou o Governo a convocar as autoridades policiais e ordenar mudanças no padrão de abordagem da polícia.

Pra quem já se acostumou a polícia matar bandido como inseticida mata barata, pode parecer excesso de frescura. Mas esse caso da Islândia serve para nos despertar dessa absorta normalidade. Serve para mostrar que, no mundo normal, gente não mata gente, muito menos gente responsável por garantir a segurança da gente.

Para o povo que desperta dessa espécie de realidade paralela, a violência no Brasil passa a ser encarada exatamente como deveria ser: uma tragédia. Um país no qual morre por ano a mesma quantidade de pessoas que foi morta durante a Guerra do Vietnã não pode ser normal.

Ao despertar para a realidade segue-se a desilusão. Um sentimento profundo e quase inescapável de que a violência, no Brasil, não tem salvação. E o pensamento de fugir dele vem, assim como veio para a população emigrante dos anos 80.

É óbvio que o pensamento está errado, assim como esteve errada a noção dos emigrantes da “década perdida” de que a situação econômica brasileira não tinha solução. Há algumas experiências de sucesso Brasil agora que mostram ser possível, sim, enfrentar e vencer a epidemia de violência.

O maior exemplo talvez esteja em Pernambuco, que há oito anos experimenta quedas sucessivas nos índices de homicídio. Recife, que já ostentou o inglório posto de capital mais violenta do país, reduziu as mortes a menos da metade do que era há oito anos. Não custa lembrar, houve um tempo em que se matava na capital pernambucana duas vezes mais do que em Fortaleza. Hoje, a Loura Desposada do Sol mata cinco – isso mesmo, CINCO – vezes mais do que Recife.

O problema, claro, está no timing. Assim como os emigrantes dos anos 80 não queriam esperar até ver o Brasil resolver seus problemas econômicos, muita gente não está disposta a esperar ver solucionado o crônico problema da violência urbana. Com um agravante: quem saiu do país na “década perdida” só temia não ter dinheiro para ficar vivo até o fim do mês; quem sai agora teme não voltar pra casa vivo no fim do dia.

Ou os governos em todos os níveis resolvem transformar a violência em problema número 1 do país, ou nos arriscamos a ver uma nova onda migratória levar alguns dos melhores cérebros do país de novo para o exterior. É esperar pra ver.

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2 Responses to Uma nova geração de expatriados

  1. Avatar de Mourão Mourão disse:

    “Ninguém – ou, pelo menos, quase ninguém – pensa em sair do Brasil porque aqui faltariam oportunidades.” Quase ninguém mesmo, nem mesmo aqueles que passam o dia todo escrachando Brasil, e choramingando porque não nasceram na Europa rica.

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